São Paulo, quinta-feira, 02 de abril de 2009

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Santa, pecadora e em defesa da vida

FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO


Estaria a igreja indo e voltando em suas decisões? Seria insensível diante do sofrimento? Teria mudado sua opinião sobre o aborto?

EPISÓDIOS COMO o da "menina de Alagoinha" ou da suspensão da excomunhão de um bispo que depois se ficou sabendo ter negado a existência do Holocausto geraram perplexidade entre católicos e críticas no mundo laico. Estaria a igreja indo e voltando em suas decisões? Seria insensível diante do sofrimento? Sua posição diante do aborto teria mudado? Esses episódios estariam acabando com sua credibilidade? Compreender o papel da igreja na sociedade atual passa por essas perguntas.
A tradição frequentemente qualifica a Igreja Católica de "santa e pecadora". Ela subsiste na história com os pecados de seus membros. Uma igreja que não aceitasse pecadores em seu seio não poderia aceitar ninguém -pois todos somos pecadores. Porém, isso não lhe retira a santidade, que é a capacidade de levar homens e mulheres a superar seus limites (pois o pecado, em última instância, corresponde ao limite extremo da condição humana).
Na igreja, declarações infelizes ou conflitantes não deveriam ser motivo de surpresa ou escândalo. Para a doutrina católica, as polêmicas ou mesmo os erros gerados por causa dos pecados dos homens não invalidam o magistério que deve orientar a conduta espiritual e moral dos católicos. Isso não decorre da capacidade intelectual ou moral de seus líderes, mas de um dom especial de Deus, que garante a verdade de cada ponto doutrinal reconhecido pela autoridade da igreja, por meio do papa e do colegiado dos bispos.
Esses temas vêm apresentados, por exemplo, na declaração "Mysterium Ecclesiae", da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, publicada em 1973, nos tempos de Paulo 6º.
Devido aos limites humanos e às mudanças históricas, a doutrina, ainda que não mude em seu conteúdo, pode vir a ser mais bem compreendida e explicitada ao longo do tempo, combinando imutabilidade e dinamismo histórico. Nesse contexto, é natural que, com a atual rapidez da troca de informações e das mudanças de contexto, surjam declarações aparentemente desencontradas.
No entanto, a rapidez com que esses desencontros estão sendo detectados e corrigidos, mesmo que causando confusão inicialmente, longe de ser uma ameaça à credibilidade da igreja, é um sinal de como a instituição milenar uma vez mais vai se adaptando aos novos tempos.
Assim, compreende-se melhor as repercussões do episódio da menina de Alagoinha, violentada pelo padrasto e submetida a um aborto. Ao longo das discussões, por vezes acaloradas, não se apresentou nenhuma mudança doutrinal, mas aparece claramente a indicação de uma rota a seguir.
O aborto permanece condenado, em qualquer hipótese, pela Igreja Católica, pois se trata de tirar a vida de um inocente que ainda não teve nem mesmo a possibilidade de vivê-la (razão da opção pelo bebê, e não pela mãe, diante da morte inevitável de um deles).
A igreja é sempre chamada a estar ao lado dos que sofrem e de mostrar essa solidariedade nessas situações-limite. Essa já era, por exemplo, a posição explicitada pela CNBB na Campanha da Fraternidade de 2008, sobre a defesa da vida.
As declarações e os desdobramentos desse triste episódio vão fortalecendo a consciência de que a igreja deve sempre manter os olhos fixos no bem daqueles que estão sofrendo, condenando o uso dessas pessoas como bandeiras políticas e procurando ajudá-las a recuperar sua dignidade ameaçada. Ela deve estar aberta para amparar os que enfrentam sérios dilemas morais e facilitar seu retorno a uma posição justa. Mas isso não significa ser conivente com o erro.
A comunidade cristã vem sendo chamada a um compromisso e a uma dedicação sempre maior para com os que sofrem -mantendo-se firme na posição do magistério. A defesa da vida não mudou para a igreja, ainda que se perceba cada vez mais a necessidade de praticá-la explicitando a solidariedade para com os que sofrem -também isso não é novidade para os católicos.
A igreja, santa e pecadora, continuará com sua atitude em defesa da vida, acreditando que a solidariedade com os que sofrem é o grande lugar de encontro entre as pessoas que querem o bem comum. Quem não acreditar nisso -e nunca tiver pecado- atire a próxima pedra.


FRANCISCO BORBA RIBEIRO NETO , sociólogo e biólogo, é coordenador de Projetos do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo). Foi um dos assessores na elaboração do texto-base da Campanha da Fraternidade de 2008, "Fraternidade e defesa da vida", da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), e um dos organizadores do livro "Um Diálogo Latino-Americano: Bioética e Documento de Aparecida".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br


Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES
Aldo Pereira: Nada aqui, nada aqui - zás!

Próximo Texto: Painel do Leitor
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.