São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Obama e a reforma da saúde

MARCOS BOSI FERRAZ


Enfatizo algumas lições, pois não temos em nossa sociedade uma discussão madura e realista sobre nosso sistema de saúde


NA MESMA semana em que o presidente Obama assinou a reforma da saúde nos EUA, o presidente Lula resgatou a proposta de criação de uma nova CPMF para viabilizar mais recursos para o nosso SUS (Sistema Único de Saúde). Infelizmente, temos como hábito insistir na revisão de decisões já tomadas em vez de procurar novas, criativas e necessárias propostas que resolvam o impasse entre a escassez de recursos e a ineficiência no uso que se faz deles. Em que pese a enorme diferença entre os sistemas de saúde dos Estados Unidos e do Brasil, apesar de em ambos existir um sistema híbrido, público e privado, valeria a pena analisar se há algo a ser aprendido com o processo de reforma em curso nos EUA. Nesse sentido, enfatizo algumas lições para nós brasileiros. 1) O tema saúde foi priorizado pelo governo e houve estímulo para a sociedade participar dessa discussão de forma organizada. Os princípios e valores da sociedade foram resgatados e valorizados. 2) A ideologia político-partidária está alicerçada em doutrinas claras, consistentes e de longo tempo que justificam as propostas e as decisões do governo: o Partido Democrata, com doutrina centrada na justiça e na segurança familiar, e o Partido Republicano, com doutrina centrada na liberdade individual e no dinamismo econômico. Aqui no Brasil, embora o SUS tenha seus princípios organizacionais e doutrinários explicitados, as ações e as práticas dependentes de decisões políticas não têm perenidade ou fundamentação ou mesmo doutrina ideológica firmemente estabelecida. Os interesses de curto prazo se sobrepõem à doutrina. 3) A reforma almeja a melhoria do sistema num período não inferior a dez anos. Ela mesma se inicia de fato somente após 2014. Esse aspecto chama a atenção para o pensar e planejar no longo prazo. Sistemas de saúde exigem esse modo de pensar e agir. São sistemas complexos, e os investimentos dependem de tempo para produzir resultados. Aqui no Brasil, em que pese novamente a nossa Constituição Federal e o nosso SUS, as decisões têm um olhar preferencial de curto prazo (estrutura e filosofia política). Nesse sentido, temos muito a aprender com os países desenvolvidos. Por fim, na comparação com o Brasil, a única semelhança é a presença de um sistema híbrido público e privado, embora as bases e as doutrinas que os sustentam sejam completamente diferentes. No caso americano, assumem-se muito mais claramente as decisões e os privilégios e se tenta explicá-los. No caso do Brasil, embora o SUS tenha apenas cerca de 20 anos de existência e os princípios doutrinários e organizacionais sejam claros e justificáveis, a prática não os evidencia plenamente por uma série de motivos. Vivemos num mundo sonhador, o que é muito bom, mas que não pode deixar de ter um olhar realista. Os EUA estimam quanto são os excluídos, ou seja, 52 milhões de americanos. Aqui no Brasil acreditamos e sonhamos com um sistema universal, mas que na realidade não atende minimamente e decentemente alguns milhões de brasileiros. Quantos são os hipertensos e diabéticos com doença diagnosticada (isso sem falar nos ainda não diagnosticados, mas doentes) e que não têm minimamente assistência e tratamento regular? Se considerarmos algumas doenças infecciosas que solapam nossa sociedade, o quadro é mais dramático ainda. Nesse contexto, quantos são de fato os excluídos no Brasil? Ao mesmo tempo em que não temos em nossa sociedade uma discussão madura e realista sobre nosso sistema de saúde, com um olhar e um planejar de longo prazo, nós continuamos a observar novos e inusitados escândalos, inaugurações de obras inacabadas, lançamento de planos com fins eleitoreiros e a eterna e etérea discussão entre a ineficiência e a insuficiência de recursos para o sistema de saúde.


MARCOS BOSI FERRAZ é médico, professor e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde (CPES), da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e diretor de Economia Médica da AMB (Associação Médica Brasileira).

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