São Paulo, sexta-feira, 02 de abril de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES


Nome aos bois

CÁSSIO SCHUBSKY

Para que servem os nomes das ruas, praças, rodovias, enfim, dos logradouros públicos ou dos prédios governamentais

PARA QUE servem os nomes das ruas, das praças, das rodovias, enfim, dos logradouros públicos ou dos prédios governamentais, e também das obras de arte (como são chamadas certas edificações, caso dos viadutos)? Em primeiro lugar, evidentemente, como referência de localização. Em segundo, muitas vezes, como homenagem a pessoas físicas e jurídicas, personalidades e instituições. E, em terceiro lugar, para preservar a memória sobre os homenageados, para que não caiam no esquecimento. Em relação à primeira função, é de extrema valia -o nome ajuda na localização, mesmo que se refira a uma flor ou a um bicho, e não se fala mais nisso. No que tange à segunda, ou seja, homenagear, aí é que a porca, muitas vezes, entorta o rabo -embora isso aconteça mais no meio rural, onde a bichinha, aclimatada ao seu habitat, está pouco se lixando para placa de rua nos centros urbanos. Agora, deixando a porca de lado, o fato é que a confusão começa, mesmo, quando se quer homenagear as pessoas, enfim, puxar um saquinho daqui e outro dali. Vejamos um caso emblemático. O do famigerado Minhocão. Já não bastasse a obra ser de um mau gosto concreto (e bota concreto nisso), ainda por cima (e bota por cima nisso) acabou com o sossego dos que moram ou andam na avenida São João, um caso internacional de como produzir poluição visual e sonora para aliviar o trânsito (dos mais ricos, pois ali ônibus não passa, nem pedestre ou bicicleta -só quando fecha, aos domingos, e vira praça sem verde). Como é o nome da engenhoca? Elevado Costa e Silva. Elevado? Pô, mas não bastava dar o nome de um tirano, do general do ato institucional número 5, ainda tinha de chamar o monstrengo de "elevado"? Embora ele não mereça ser nome nem de viela (ele e o Videla, aquele outro ditador, lá da Argentina), seria mais adequado, em termos semânticos e históricos, escolher outro local. Que tal "marginal" Costa e Silva? E a mania, então, de dar nome de bandeirante para rodovia paulista? A começar da rodovia dos Bandeirantes. E tem também a Anhanguera, a Raposo Tavares, a Fernão Dias. Sim, sei, eles rasgaram nossas fronteiras, garantiram a posse das terras, descobriram riquezas. Mas e a matança indiscriminada de índios que promoveram, onde é que fica? Quase todo mundo esquece (quando sabe...) e só se refere a eles como a um panteão de heróis. E a estradinha mais mixuruca, que nome tem? Tamoios! Não é nada, não é nada... não é nada mesmo. Imagine só como seria bom morar numa São Paulo em que você pudesse pegar a avenida Adoniran Barbosa, depois desembocar no viaduto Luiz Gama (o advogado dos escravos), para prosseguir pela rodovia Vladimir Herzog. Ou então caminhar livremente por aí, saindo da alameda Cândido Portinari, entrando no túnel Revolta da Chibata e atravessando a passarela Luís Carlos Prestes (ou passarela Cavaleiro da Esperança) para chegar na praça Clarice Lispector e entrar no edifício Evandro Lins e Silva. Mudando de assunto, mas só de leve: trocar o nome, pode? Por exemplo, risca o Costa e Silva e escreve assim: elevado deputado Rubens Paiva. Que beleza. Pode, sim. Aqui, no papel, nada é proibido. E o terceiro lugar? "Que terceiro lugar", pergunta o leitor esquecido. O terceiro lugar na função das placas, do segundo parágrafo, lá no começo, lembra? Ou seja, "preservar a lembrança dos homenageados, para que não caiam no esquecimento". Teoricamente, o nome serve para preservar. Mas é interessante como há homenagens a ilustres desconhecidos. Por exemplo: na Pompeia tem a rua padre Chico. Menção a um sacerdote conhecido da população do bairro, um líder religioso da paróquia? Talvez não. Suspeito que seja referência a um personagem do século 19, muito popular na Pauliceia da época, o mesmo padre Chico que cuidou de Castro Alves, depois que o poeta dos escravos deu um tiro acidental no próprio pé, durante uma caçada na região do Brás. Mudando de pato para ganso, René Thiollier, ativista cultural, ainda merece homenagem à altura, em uma grande praça. Por fim, recorro de novo à porca, que volta a entortar o rabicho. Porque o que falta é informação. Algo fácil de resolver. Outro dia, perambulando pela cidade maravilhosa, observei certas ruas com identificação básica sobre o homenageado, em letras pequenas, ao pé da placa. Algo assim: rua Vinícius de Moraes -poeta, compositor, diplomata. São Paulo e todo mundo podem copiar o Rio. Que tal começar pelo elevado Costa e Silva? Minicurrículo: ditador, promoveu a tortura e o extermínio de presos políticos.


CÁSSIO SCHUBSKY, 44, editor e historiador, é organizador do livro "Castro Alves e seu Tempo", de Euclides da Cunha (Lettera.doc e Associação dos Antigos Alunos da Faculdade de Direito da USP).

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