São Paulo, quinta-feira, 02 de maio de 2002

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OTAVIO FRIAS FILHO

Abril Despedaçado

"Lavoura Arcaica" e este "Abril Despedaçado", que estreou ontem, são talvez os melhores exemplos de qualidade na safra mais recente de filmes brasileiros. Ao mesmo fundo patriarcal e agrário, os dois filmes aplicam recursos técnicos e linguagem narrativa que superam os resquícios de amadorismo que ainda marcavam o cinema nacional.
Os dois filmes oferecem uma boa plataforma comparativa. São parecidos no conteúdo que circunscreve a trama às obrigações e interditos primitivos, arraigados na economia familiar rural. Ambas as narrativas tratam da claustrofobia em núcleos familiares refratários à passagem do tempo: num caso o incesto, no outro a vingança.
É essa semelhança que faz ressaltarem melhor as diferenças. Baseado na obra de Raduan Nassar, "Lavoura" é um filme exuberante e barroco, em que sobejam os memoráveis achados visuais revelados pelo diretor Luiz Fernando Carvalho com sua câmera de microscópio. "Abril", ao contrário, dá tratamento seco a sua fábula diagramática.
O despojamento de "Abril" parece sua maior qualidade estética. Não se trata do cinema "pobre" da tradição cinema-novista, a que o filme faz homenagem, porém, como observou Mario Sergio Conti. É um cinema que oculta seus recursos tecnológicos, artísticos e de produção a fim de parecer mais simples, menos elaborado, do que é.
Dadas as precariedades até há pouco endêmicas no cinema brasileiro, era comum que os filmes sofressem de excesso. Todos os discursos e manias do diretor eram postos em cena, pois ele não sabia quando filmaria de novo; todos os recursos que a produção pudesse reunir eram superutilizados, com o propósito, tão inartístico, de fazê-los render.
O filme de Walter Salles produz o sentimento oposto. Sob a sobriedade elegante da narrativa existe mais virtuosismo do que salta aos olhos, como se o filme camuflasse a si mesmo. A sensação é um pouco como a de assistir a um filme iraniano cuja produção, embora austera, não conseguisse esconder sua sofisticação técnica.
O filme aborda uma fábula mítica, extraída da novela do albanês Ismail Kadaré. Suas circunstâncias são adaptadas para o sertão brasileiro de 1910, o que é facilitado pela universalidade do mito: a crônica de vingança entre duas famílias cujos integrantes se matam de acordo com um ritual rígido de emboscadas "olho por olho, dente por dente".
"Antígona", de Sófocles, não versa sobre outro assunto, os direitos da justiça determinada pelo sangue contra o direito impessoal imposto pelo Estado. É um conflito típico em toda sociedade agrária, tornado muitas vezes mais agudo conforme ela se confronta com as formas sociais novas que haverão de erradicá-la cedo ou tarde.
Para um brasileiro, o estranhamento de "Abril Despedaçado" é que esse tipo de violência ritualizada, obediente a um cânone, prosperou pouco entre nós. Esta é uma sociedade brutal, decerto, mas onde a violência aparece difusa, aleatória, fragmentada. O modelo da vingança organizada surge à distância neste filme analítico, quase documental.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.



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