|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
OTAVIO FRIAS FILHO
Abril Despedaçado
"Lavoura Arcaica" e este "Abril
Despedaçado", que estreou ontem, são talvez os melhores exemplos
de qualidade na safra mais recente de
filmes brasileiros. Ao mesmo fundo
patriarcal e agrário, os dois filmes aplicam recursos técnicos e linguagem
narrativa que superam os resquícios
de amadorismo que ainda marcavam
o cinema nacional.
Os dois filmes oferecem uma boa
plataforma comparativa. São parecidos no conteúdo que circunscreve a
trama às obrigações e interditos primitivos, arraigados na economia familiar rural. Ambas as narrativas tratam da claustrofobia em núcleos familiares refratários à passagem do tempo: num caso o incesto, no outro a
vingança.
É essa semelhança que faz ressaltarem melhor as diferenças. Baseado na
obra de Raduan Nassar, "Lavoura" é
um filme exuberante e barroco, em
que sobejam os memoráveis achados
visuais revelados pelo diretor Luiz
Fernando Carvalho com sua câmera
de microscópio. "Abril", ao contrário,
dá tratamento seco a sua fábula diagramática.
O despojamento de "Abril" parece
sua maior qualidade estética. Não se
trata do cinema "pobre" da tradição
cinema-novista, a que o filme faz homenagem, porém, como observou
Mario Sergio Conti. É um cinema que
oculta seus recursos tecnológicos, artísticos e de produção a fim de parecer
mais simples, menos elaborado, do
que é.
Dadas as precariedades até há pouco
endêmicas no cinema brasileiro, era
comum que os filmes sofressem de excesso. Todos os discursos e manias do
diretor eram postos em cena, pois ele
não sabia quando filmaria de novo;
todos os recursos que a produção pudesse reunir eram superutilizados,
com o propósito, tão inartístico, de fazê-los render.
O filme de Walter Salles produz o
sentimento oposto. Sob a sobriedade
elegante da narrativa existe mais virtuosismo do que salta aos olhos, como
se o filme camuflasse a si mesmo. A
sensação é um pouco como a de assistir a um filme iraniano cuja produção,
embora austera, não conseguisse esconder sua sofisticação técnica.
O filme aborda uma fábula mítica,
extraída da novela do albanês Ismail
Kadaré. Suas circunstâncias são adaptadas para o sertão brasileiro de 1910, o
que é facilitado pela universalidade do
mito: a crônica de vingança entre duas
famílias cujos integrantes se matam
de acordo com um ritual rígido de
emboscadas "olho por olho, dente por
dente".
"Antígona", de Sófocles, não versa
sobre outro assunto, os direitos da justiça determinada pelo sangue contra o
direito impessoal imposto pelo Estado. É um conflito típico em toda sociedade agrária, tornado muitas vezes
mais agudo conforme ela se confronta
com as formas sociais novas que haverão de erradicá-la cedo ou tarde.
Para um brasileiro, o estranhamento
de "Abril Despedaçado" é que esse tipo de violência ritualizada, obediente
a um cânone, prosperou pouco entre
nós. Esta é uma sociedade brutal, decerto, mas onde a violência aparece difusa, aleatória, fragmentada. O modelo da vingança organizada surge à distância neste filme analítico, quase documental.
Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Santos e pecadores Próximo Texto: Frases
Índice
|