São Paulo, domingo, 02 de maio de 2004

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A morte anunciada do petróleo

ROGÉRIO CEZAR DE CERQUEIRA LEITE

Em janeiro deste ano, pela primeira vez na história, uma companhia de petróleo, a Shell, revelou que havia superestimado suas reservas comprovadas. O engano teria sido de 20%, ou seja, 3,9 bilhões de barris equivalentes de petróleo (BEP), o mesmo que seis anos e meio do consumo brasileiro. Como conseqüência imediata, as ações da Shell caíram 7%. Outras companhias congêneres também sofreram reflexos negativos no mercado, embora afirmassem reiteradamente que seus processos de avaliação eram mais seguros. Obviamente ficaram dúvidas.
O valor de ações de companhias de petróleo e gás variam diretamente com as dimensões de suas reservas comprovadas. Trivial, não é? Entretanto, como só as companhias, de acordo com seus próprios métodos, realizam essas avaliações, têm elas interesse em superdimensionar suas reservas comprovadas. O parâmetro que é convencionalmente usado para exprimir esse valor é a razão entre a reserva comprovada e a produção, R/p. Quanto maior esse número, maior o valor da companhia. A Petrobras, por exemplo, conseguiu manter seu parâmetro R/p aproximadamente constante, em torno de 17, de 1997 a 2002.
Todavia o R/p das reservas prováveis caiu vertiginosamente nesse mesmo período, de 80% para 30% do R/p das reservas comprovadas. Deduz-se que reservas consideradas apenas prováveis foram se convertendo progressivamente em comprovadas. Muita sorte, não é? Esse acontecimento pode ter resultado de avaliações técnicas mais precisas ou, alternativamente, de um crescente e oportuno otimismo.


Devido à biomassa energética, o Brasil terá melhores perspectivas a médio prazo do que o resto do mundo

Um acontecimento ainda mais grave foi o estabelecimento pela Opep de cotas para exportação. Como essas cotas eram proporcionais às reservas, subitamente, em 1988, cinco dos países-membros tiveram suas reservas aumentadas em um ano por um fator que multiplicou por duas a três vezes as dimensões das reservas anteriores. Os demais membros também mudaram suas reservas, pouco antes ou depois, em fatores comparáveis. Esse insólito acontecimento foi a principal causa do mito de que, "quanto mais se consumia, mais cresciam as reservas de petróleo". Mito tão poderoso que até hoje, quando novas descobertas não repõem sequer 30% do consumo anual, altas autoridades brasileiras no setor ainda o repetem, como papagaios.
A farsa se ampliou em meados da década de 90, quando uma série de artigos de funcionários de empresas de petróleo e também de alguns acadêmicos reagiu às previsões supostamente pessimistas de logo depois da crise do petróleo, em 73. Grande influência tiveram as avaliações de P. R. Odell, que, entre 1994 e 1999, concluíam enfaticamente que não estava o planeta "ficando sem, mas se afundando em petróleo", ignorando completamente a natureza da "guerra das quotas" da Opep.
Outro fator de cizânia foi o uso simplório por muitos analistas da grandeza R/p, mesmo quando levaram em consideração o crescimento da demanda e outros fatores. Esqueciam a natureza física da extração, fosse para um poço solitário, fosse para um campo, fosse para uma província petrolífera -ela segue inexoravelmente uma curva que cresce inicialmente com o tempo, atinge um pico e decresce lentamente, até o esgotamento. Já em 1995, considerando o aproveitamento de reservas prováveis e a descoberta de novos campos, Campbell e Laherree publicaram avaliações que vêm sistematicamente sendo confirmadas e, atualmente, nenhum analista pensante discorda do essencial desses resultados.
O que apresento em seguida é praticamente o consenso de especialistas independentes.
Em resumo, a produção de hidrocarbonetos fósseis em geral, inclusive o petróleo de águas profundas, os petróleos não-convencionais, os pesados, o polar e o gás natural, convencional e não-convencional, deve ter seu pico em 2010 -produção essa que estará reduzida à metade em 2050, quando será insuficiente para suprir 20% da demanda de combustíveis líquidos, na melhor das hipóteses.
O petróleo convencional já atingiu um platô de produção máxima com 27 bilhões de barris por ano, que se estenderá até 2010, devendo cair então rapidamente, chegando em 2050 a apenas 8 bilhões. O gás natural alcançará o pico de produção dentro de 15 anos.
Essas previsões pressupõem um crescimento médio da economia mundial de 2,5% ao ano e a contribuição de reservas a serem descobertas.
O caso do Brasil não é menos preocupante. De fato, como está previsto, é possível que alcancemos em dois ou três anos a auto-suficiência. Mas essa felicidade vai durar pouco. Com o atual ritmo de investimento e na hipótese de um crescimento econômico de 3% ao ano, um ano após ser atingida essa auto-suficiência, ela será perdida rapidamente e, em menos de 10 anos, estaremos com uma deficiência de mais de 50%. Aumentar o ritmo de investimento apenas deslocaria o pico por algum tempo, mas tornaria mais abrupto o esgotamento.
Todavia, devido à biomassa energética, principalmente o álcool combustível, o Brasil terá melhores perspectivas a médio prazo do que o resto do mundo, que terá de recorrer ao carvão para produzir combustíveis líquidos, a custos provavelmente bastante mais elevados.

Rogério Cezar de Cerqueira Leite, 72, físico, é professor emérito da Unicamp e membro do Conselho Editorial da Folha.


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