São Paulo, quinta-feira, 02 de junho de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O governo será como um náufrago

AUGUSTO DE FRANCO

O PT conseguiu fazer a única coisa que sabia fazer. Politizou completamente a vida institucional. Politizou-a, entretanto, não no sentido da política democrática, porém no sentido, inverso e degenerado, do realismo político e da política como "arte da guerra".


Os golpes que podem ser realmente letais para o governo não vêm do PSDB ou do PFL, mas da sua própria base aliada


Tudo agora é uma luta. Nada acontece no Brasil de hoje que não possa ser interpretado como resultado de uma luta de grupos pelo poder. Se alguém é acusado de corrupção, o que importa não é apurar se houve ou não houve o delito, mas sim classificar o evento como conseqüência de uma guerra pelo poder, uma antecipação indevida da campanha eleitoral. Se alguém é filmado com a boca na botija, cometendo um crime, a preocupação maior é saber quem filmou e por que filmou, e não investigar o ato criminoso e punir o culpado.
Esse tipo de politização da vida institucional brasileira é uma perversão da política. Se for mantido por muito tempo vai esfarinhar as nossas instituições democráticas.
A baixa política, vista assim como uma guerra, inexorável e onipresente, não se resume a um confronto entre quem está do lado do governo e quem está contra o governo. Ela se infiltra e se instala em todos os terrenos. Dentro do governo. Dentro do partido do governo. E, sobretudo, entre o governo e sua base aliada.
Os golpes que podem ser realmente letais para o governo não vêm do PSDB ou do PFL, mas da sua própria base aliada. Ou da parte dela que conta de fato, em termos de correlação de forças. Aqueles que podem dar maioria congressual ao governo são, exatamente, os que podem arruiná-lo.
Entre os que estão do lado do governo, tudo agora também é uma luta, mas não uma luta por alternativas, uma luta programática. É apenas uma luta por sobrevivência política e por vantagens, cargos e privilégios. Mas foi o próprio governo que estimulou isso.
O governo luta para manter o controle da agenda política nacional e a sua própria governabilidade. Mas, como não sabe fazer a alta política, exercer o macrocontrole -pois isso exige um projeto maior que Lula não tem e uma arte que ele e o PT não dominam-, foi cedendo aqui e ali, concedendo no varejo alguns favores, na esperança de que, assim, conseguiria manter o controle da situação. Como percebeu que isso era insuficiente, decidiu aumentar a dose, inaugurando o fisiologismo no atacado. Tudo para realizar o seu único projeto político declarável: a reeleição de Lula.
Mesmo assim, não bastou. La nave va, mas fazendo água e meio ao léu, com os tripulantes tapando os buracos no casco e improvisando na pilotagem.
Os aliados programáticos do governo desapareceram da cena política. PSB e PC do B, como já estão do lado do governo, não são atores a considerar. Na mentalidade deformada pela realpolitik dos dirigentes petistas, são forças já incorporadas. Pura burrice. PPS, PDT e PV também eram tratados assim e já desembarcaram.
No cenário atual, só contam mesmo, para o governo, o PMDB, o PTB, o PP e o PL. Mas contam negativamente, em virtude da guerra interna, dissimulada, em que se transformou a sua relação com o PT. Para sobreviverem como atores políticos relevantes, passaram a atuar como "chantagistas oficiais" do governo. "Oficiais" porque, incrível, são reconhecidos e aceitos como tais pelo próprio governo, sempre disposto a fazer qualquer negócio com eles (até mesmo, vergonhosamente, defender e elogiar Roberto Jefferson) para conseguir a reeleição.
Os estrategistas do governo devem ser muito tacanhos para não perceber que não há como administrar um presidencialismo de coalizão nessas circunstâncias. É crise na certa. E crise potencialmente terminal. Se não agora, daqui a pouco.
Pois é óbvio que esses aliados instrumentais do governo não vão se tornar mais colaborativos. Pelo contrário, sabendo-se usados, vão usar o governo. À medida que o tempo passa, vão dobrar o preço e aumentar as exigências. Se a situação degenerar mais um pouco, vão abandonar o barco e, ainda, fazendo o discurso de que não dá para ficar em um governo incompetente e que traiu seus compromissos de campanha.
Não precisava ser assim. Foi o PT que abriu essa caixa de Pandora ao achar que todos os políticos, fora da esquerda, eram farinha do mesmo saco e, ao praticar o fisiologismo no atacado, certo de que esse era o caminho para calar a boca dos "trezentos picaretas" enquanto trabalhava para implantar a sua única proposta estratégica: reter o poder pelo maior tempo possível. Tanto realismo deu nisso. Agora é tarde. O barco adernou e está afundando.
Daqui a pouco, o governo não vai mais tentar pilotar. Toda a sua luta será para conseguir chegar até o início da campanha, para agarrar a tábua de salvação que constitui o palanque de 2006. Sim, porque, logo, logo, o governo será como um náufrago, em virtude de seus próprios desacertos políticos, sempre mais capitais do que a inépcia administrativa de que é acusado pela oposição e pelos próprios aliados. Continuará vivo enquanto permanecer nadando. Poderá ainda se salvar. Mas, a cada dia, aumentarão as suas chances de morrer na praia.

Augusto de Franco, 54, é analista político do site e-Agora (www.e-agora.org.br) e autor de, entre outros livros, "A revolução do local: globalização, glocalização, localização" (2004). Foi conselheiro e membro do comitê executivo do Conselho da Comunidade Solidária durante o governo FHC (1995-2002).


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