São Paulo, sexta-feira, 02 de junho de 2006

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JOSÉ SARNEY

A catarata não é bolivariana

NOS CONFORMAMOS em saber como somos, não meditamos demais como seremos, mas não nos conformamos em não saber como éramos, de onde viemos e o que fazíamos no passado. A essa angústia se chama busca de conhecimento antropológico. Agora mesmo faz a festa dos meios científicos uma descoberta australiana, encontrando mais uma prova de que o "hobbit", o homem anão, existiu mesmo, gostava de caçar e foi desenhado numa idealização artística com uma paca nas costas, e não muito protegido pela natureza naquilo que faz o êxito das revistas "quentes" quando apresentam seus grandes heróis. Não se sabe se era inteligente mesmo ou se era um obtuso aluno da escolinha do professor Raimundo, já que o cientista Adam Brumm afirma que "a relação entre a massa cerebral e inteligência é baseada mais em pré-concepções que em demonstrações", embora nosso Rui Barbosa fosse bem pequeno, mas tivesse uma cabeça grande, mais para cearense que para baiano. Tudo isso acontece quando o presidente Chávez, da Venezuela, descobre que em Pernambuco não se sabe fazer operação de catarata e enche um avião para levar cem simplórios pernambucanos do interior para testar a competência dos oftalmologistas venezuelanos. A desculpa é que eles são de Abreu e Lima, município com o nome do general pernambucano que lutou nas batalhas de Boyacá e Carabobo (nas quais a Colômbia e a Venezuela ficaram independentes), com Bolívar, no movimento de libertação das colônias espanholas. Quando eu lancei com Alfonsín a aliança para "crescermos juntos", o ex-presidente da Venezuela, Andrés Pérez, chamou-nos de "os primeiros presidentes bolivarianos da Argentina e do Brasil". Chávez não fez ainda essa bonetada com Lula, mas deseja que os olhos pernambucanos, livres de catarata, vejam o Brasil caminhar para o sonho de Bolívar. Opinião à parte, considero que gestos assim, em vez de integrar a América Latina, desintegram-na. Que a Venezuela ajudasse a Prefeitura de Abreu e Lima a fazer um grande hospital, com uma divisão ultramoderna de oftalmologia, uma grande estátua de Abreu e Lima para lembrá-lo em uma de suas praças, seria um "beau geste"; mas julgar que, no Brasil, ainda não se sabe fazer esse tipo de intervenção é desconhecer o que somos e estamos realizando. Operação de catarata já foi até mutirão do SUS e, certamente, não foi com essa integração que sonhou Abreu e Lima, cujo pai, o padre Roma, foi fuzilado na revolução de 1817. Pernambuco não é bobo e "fala para o mundo".

@ - jose-sarney@uol.com.br


JOSÉ SARNEY escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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