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Poder aquisitivo
EDUARDO PORTELLA
Os governantes, em geral despreparados, continuam convencidos de que tudo podem. É quando o poder se torna obra de "ficção"
TODOS MAIS ou menos sabem o
que o poder pode. Poucos, o que
o poder não pode.
Não pode, por exemplo, subtrair,
privilegiar uns em detrimento de outros, falsificar resultados, divulgar estatísticas fantasiosas, privatizar o espaço público, deixar de fora esses pré-requisitos. Ao cultuar a auto-estima
excessiva ou o despreparo exagerado,
ele habita feliz a sua ilha de fantasias.
E imagina que pode tudo. Quando
descoberto, exposta a sua nudez, o poder fica "triste". Dessa tristeza já nos
falou Albert Camus.
Os governantes, em geral despreparados, continuam convencidos de que
tudo podem, de que não têm limites,
de que nem o céu é o limite. É quando
o poder se transforma em obra de
"ficção". Mas, sem imaginação, preocupado em receber o aplauso ocioso
do auditório nanico. Dessa ficção nos
falou Roland Barthes. O grave é que,
ao descobrirmos que o "rei está nu",
muita água já rolou embaixo da ponte.
O território ao qual se chega apenas
pelo poder de compra jamais será um
lugar antecipado, ou antecipador.
Quando o valor já não se mede por
qualquer vigor moral, mas pela sua
exclusiva capacidade de compra, alguma coisa está errada.
É preciso apurar a memória e discernir. Coisas em que o brasileiro não
é forte. Nunca preservamos a memória, e muito menos a história. A não
ser como anedota. Persiste a predominância aritmética nas avaliações e
na contabilidade eleitoral. Esquecem
ainda que todo poder é transitório e
deve ser transitivo. Não tem valor por
si só. Vale o que podemos fazer com
ele em termos de benefício coletivo.
Não é preciso muito esforço para
verificar que o "cibermundo" é amnésico. Avesso, até porque usa a velocidade, às rememorações. É puro presente. E o puro presente alia-se facilmente à pequenez.
Em meio a esse quadro preocupante, surgiram novos personagens nessa
cena contemporânea ou simplesmente contábil: o valor agregado, o caixa
dois, o mensalão, o sanguessuga. O
vocabulário da língua portuguesa
nunca supôs se enriquecer vertiginosamente dessa pobreza. Quando vamos retirar a corrupção e a fraude da
agenda nacional e colocar nos debates
idéias e programas?
Tenho a impressão, se não me equivoco, de que a política partidária,
mesquinha, volátil e interesseira vem
se dedicando a essa encenação cada
vez mais banal e enfadonha.
A saída? Onde está a saída? É simples e é complicada. Sobretudo com
essa desertificação generalizada. A
sociedade, munida do voto soberano,
ainda é o melhor tribunal para vigiar,
punir e premiar com legitimidade.
Resta saber se um país educacionalmente atrasado se encontra em condições de votar bem.
O que acontece é que o Brasil não
tem dado a devida prioridade à educação. Os problemas não são os eventuais ocupantes da pasta correspondente. O atual governo, é justo que se
reconheça, tem tido bons ministros
da educação. A questão é outra.
A rigor, o Estado brasileiro sempre
ignorou a educação. Somos uma população sem escola. Os insuspeitos
organismos internacionais publicam
pesquisas que nos envergonham. O
ensino superior público só atende 2%
da demanda nacional. Os professores
são escandalosamente mal remunerados. Estamos defasados quantitativa e qualitativamente. Anuncia-se,
em boa hora, um sistema de educação
à distância. É louvável. Porém, quem
vai assegurar a programação, o acompanhamento, a monitoração? E como
andam os quadros docentes na área?
De qualquer modo, o progressismo
fraudulento está sendo enterrado,
sem choro nem vela. Falta destituir o
poder aquisitivo.
EDUARDO PORTELLA, 73, escritor e professor emérito
da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Letras, é presidente do Comitê Caminhos do Pensamento e do Fundo
Internacional para a promoção da Cultura, da Unesco, e diretor da revista "Tempo Brasileiro". Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo), diretor-geral-adjunto da Unesco (88-93) e presidente da Conferência Geral da Unesco (97-99).
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