São Paulo, sábado, 02 de agosto de 2008

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GUSTAVO FRANCO

Outro lote de ilusões perdidas

O DELICADO equilíbrio político-planetário desse governo parece se organizar em torno de uma realidade avassaladora, uma espécie de "big bang" a partir do qual se percebeu que não existe uma política econômica "de esquerda" ou "alternativa".
Todavia, em razão desta rendição no terreno da economia, cuja gestão foi entregue ao "cânone neoliberal", ou às boas práticas internacionais, duas providências se seguiram: a primeira foi exilar, com honras, os depositários de "idéias alternativas" em planetas afastados, ministérios que se dedicam a coisas inofensivas, como o futuro muito distante, quando todos estaremos mortos, e institutos de pesquisa, agora dedicados a reflexões muito mais profundas e relevantes que a inflação e as agruras da macroeconomia.
A segunda foi concentrar na política externa a esperança de se conseguir validar os ideais petistas históricos, ou se confirmar a existência de "sistema Norte-Sul", ou "centro-periferia", que caberia ao Brasil subverter, sabe-se lá para que direção.
Em vista desta delicada e bem urdida acomodação de sonhos a realidades cruéis, a semana que passou, na qual as manchetes se dividiram entre o fracasso de Doha e o crescente pavor com a aceleração da inflação, pode se tornar um divisor de águas.
Sobre a volta da inflação, vale repisar que a aceleração é pequena demais para justificar esse medo todo, sendo este o enigma a desvendar: por que esse tantinho de inflação produz tanta apreensão. E a resposta é simples: o medo deve ser visto como proporcional ao gosto que o brasileiro desenvolveu pela estabilidade. Enxergamos a velha senhora como um ex-alcoólatra observa um bombom com recheio de licor: uma dose minúscula do diabólico néctar pode desmanchar uma abstinência duramente conquistada. Por isso, o Banco Central está mais forte do que nunca.
O fracasso de Doha já foi longamente esmiuçado pelos especialistas. Vale acrescentar como ilustração que nossa diplomacia parecia refletir, de forma educada e profissional, uma postura governamental de aversão à globalização e, no limite, ao estrangeirismo, cuja expressão mais chula, mas não menos sintomática, se achava em um cartaz que andava pelas ruas. "Halloween é o cacete", dizia o cartaz, assinado por algum movimento nacionalista punk.
Pois é. Faltou observar que "cacete" vem do francês "casse tête", como cassetete, passando por processos lingüísticos adaptadores conhecidos como haplologia e hiperbibasmo. O ataque ao estrangeirismo é tão tolo quanto a ilusão de que existe "luta de classes" internacional.

gh.franco@uol.com.br


GUSTAVO FRANCO escreve aos sábados nesta coluna.


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