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BORIS FAUSTO
Infância no Brás
O pequeno livro de Drauzio Varella "Nas Ruas do Brás" (Companhia das Letrinha), embora destinado a um público infantil, tem, entre
outros méritos, o de ser uma atração
também para os adultos. Ao ler o texto
de um só fôlego, me lembrei de um
trecho do "Marco Zero", de Oswald de
Andrade, que serviu de epígrafe ao
brasilianista Richard Morse, em sua
"Formação Histórica de São Paulo":
"- E de Carnaval? O Senhor gosta,
seu Xavier?
- Gostei... do antigo.
- Depois de um silêncio, disse: "o
pessoal do Braz/ tomou conta e estragou tudo".
..................................................
O mundo para Xavier dividia-se
perfeitamente em/ duas metades: as
famílias e o pessoal do Braz."
De fato, puritanismo à parte, para os
paulistanos de classe média, que viveram na São Paulo das décadas de 30 a
50, existiam dois mundos, separados
física e metafisicamente pelas porteiras do Brás. Quando elas se fechavam
de uma hora para outra, dando passagem aos trens da Central do Brasil, as
fronteiras ficavam bloqueadas até a
nova abertura. Nesse intervalo, os passageiros que iam tomar o trem para o
Rio de Janeiro, na Estação do Norte,
enfureciam-se com o governo e as
malditas porteiras.
O bairro era visto como lugar de
concentração de imigrantes rústicos,
que outros imigrantes, espalhados pela cidade, olhavam com desprezo, não
tanto pela pobreza como pelos "maus
modos". Em minha casa, por exemplo, quando alguém mastigava sem fechar a boca durante as refeições, os
mais velhos diziam: "Que é isso, você
não mora na Caetano Pinto!"
Drauzio Varella conta algo de sua
meninice, ressaltada pela liberdade de
correr livremente atrás dos balões,
pescar no rio Tietê, chocar caminhões
pelas ruas do Brás. Evita, porém, o
saudosismo idílico, esse falseador da
memória, falando dos meninos brutamontes e de coisas bem mais traumáticas, como a morte prematura da
mãe.
Mas, por seu relato e por minha experiência pessoal, dá para perceber
que havia algo em comum na vida dos
garotos do Brás ou da Consolação,
afora o drama das mortes fora do tempo: o fascínio pelo cinema, nas longas
tardes de domingo; a paixão pelo futebol, que incluía a veneração de ídolos
como Leônidas, o Diamante Negro,
materializada no chocolate envolvido
em celofane da mesma cor; a cena cotidiana em que despontavam os caminhões carregados de cubos de gelo,
entregues nas residências, à falta geladeiras; o armazém da esquina, onde o
acerto de contas se fazia no fim do
mês, com a freguesa ou o "freguês de
caderneta"; os vendedores de frutas e
verduras, de carvão, ou de falsos tapetes da ilha da Madeira, batendo de
porta em porta.
No fim da leitura, acabei verificando
que o texto, na aparência tão límpido,
contém um mistério, envolto numa
confissão: como o dr. Varella, nascido
no Brás, com ascendentes espanhóis e
portugueses, contrariou as leis da genética e, desde criancinha, se tornou
sãopaulino?
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta
coluna.
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