São Paulo, segunda-feira, 02 de setembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

BORIS FAUSTO

Infância no Brás

O pequeno livro de Drauzio Varella "Nas Ruas do Brás" (Companhia das Letrinha), embora destinado a um público infantil, tem, entre outros méritos, o de ser uma atração também para os adultos. Ao ler o texto de um só fôlego, me lembrei de um trecho do "Marco Zero", de Oswald de Andrade, que serviu de epígrafe ao brasilianista Richard Morse, em sua "Formação Histórica de São Paulo":
"- E de Carnaval? O Senhor gosta, seu Xavier?
- Gostei... do antigo.
- Depois de um silêncio, disse: "o pessoal do Braz/ tomou conta e estragou tudo".
..................................................
O mundo para Xavier dividia-se perfeitamente em/ duas metades: as famílias e o pessoal do Braz."
De fato, puritanismo à parte, para os paulistanos de classe média, que viveram na São Paulo das décadas de 30 a 50, existiam dois mundos, separados física e metafisicamente pelas porteiras do Brás. Quando elas se fechavam de uma hora para outra, dando passagem aos trens da Central do Brasil, as fronteiras ficavam bloqueadas até a nova abertura. Nesse intervalo, os passageiros que iam tomar o trem para o Rio de Janeiro, na Estação do Norte, enfureciam-se com o governo e as malditas porteiras.
O bairro era visto como lugar de concentração de imigrantes rústicos, que outros imigrantes, espalhados pela cidade, olhavam com desprezo, não tanto pela pobreza como pelos "maus modos". Em minha casa, por exemplo, quando alguém mastigava sem fechar a boca durante as refeições, os mais velhos diziam: "Que é isso, você não mora na Caetano Pinto!"
Drauzio Varella conta algo de sua meninice, ressaltada pela liberdade de correr livremente atrás dos balões, pescar no rio Tietê, chocar caminhões pelas ruas do Brás. Evita, porém, o saudosismo idílico, esse falseador da memória, falando dos meninos brutamontes e de coisas bem mais traumáticas, como a morte prematura da mãe.
Mas, por seu relato e por minha experiência pessoal, dá para perceber que havia algo em comum na vida dos garotos do Brás ou da Consolação, afora o drama das mortes fora do tempo: o fascínio pelo cinema, nas longas tardes de domingo; a paixão pelo futebol, que incluía a veneração de ídolos como Leônidas, o Diamante Negro, materializada no chocolate envolvido em celofane da mesma cor; a cena cotidiana em que despontavam os caminhões carregados de cubos de gelo, entregues nas residências, à falta geladeiras; o armazém da esquina, onde o acerto de contas se fazia no fim do mês, com a freguesa ou o "freguês de caderneta"; os vendedores de frutas e verduras, de carvão, ou de falsos tapetes da ilha da Madeira, batendo de porta em porta.
No fim da leitura, acabei verificando que o texto, na aparência tão límpido, contém um mistério, envolto numa confissão: como o dr. Varella, nascido no Brás, com ascendentes espanhóis e portugueses, contrariou as leis da genética e, desde criancinha, se tornou sãopaulino?


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.

Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Parando no "D"
Próximo Texto: Frases


Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.