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CARLOS HEITOR CONY
Céus e terras
RIO DE JANEIRO - Todos somos vítimas de idéias erradas a nosso respeito. No meu caso, não sei por que, volta e meia apelam para mim em busca
de conselhos sobre paixão. É um mal
ou um bem? Devemos amar sem paixão? O limite entre o amor e o desvario é tênue ou profundo? Sinceramente, quem sou eu para responder a
questão tão alienada, digna daquele
concílio bizantino que discutia o sexo
dos anjos.
O amor é necessário, a paixão é descartável. Mas é bom quando acontece. Todos os outros valores ficam irrelevantes -a fome que mata em Biafra, as torres do World Trade Center
desabando, o nosso time sendo rebaixado à segunda divisão.
Tive um amigo que viveu uma paixão durante sete anos, como aquele
Jacó do soneto do Camões, que se
amarrou em Raquel, "serrana e bela". Não tomou conhecimento do assassinato de Kennedy, do golpe militar de 64, dos Beatles, da morte de
Guevara, do AI-5, do tricampeonato
em 1970.
Possuído pela paixão, a Raquel dele
chamava-se Marlene e morava no
Méier. Ele vivia, respirava, sofria e
gozava num só sentido, num único
rumo: ela. O vestido que estaria
usando, com quem sairia naquele sábado, a música que estaria ouvindo.
Ele flutuava no espaço, como um
ectoplasma bêbado, somente pensando nela, mesmo quando estava com
ela. Até que um dia a paixão acabou,
despejando-o novamente na terra e
no cotidiano de todos nós.
Encontrei-o então, furioso, queixando-se do ralo entupido de sua cozinha. Pagara adiantado a um bombeiro para fazer o serviço, o sujeito levara o dinheiro, esburacara o chão à
procura do entupimento e desaparecera havia três dias. Como pode?
Queria ir à polícia, escrever aos jornais, mover céus e terras, os mesmos
céus e as mesmas terras que, por sete
anos, não existiam para ele, muito
menos um entupido ralo de cozinha.
A paixão tem isso de bom. Céus e
terras deixam de existir, ficamos entupidos como um ralo que não escoa
o nosso desatino.
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