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São Paulo, quinta-feira, 02 de outubro de 2003

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OTAVIO FRIAS FILHO

Um papa e tanto

Na véspera de completar 25 anos, o pontificado de João Paulo 2º é o terceiro ou quarto mais longo da história. Sua importância transcende, porém, a mera extensão no tempo. Esse período coincidiu com mudanças profundas na geopolítica mundial e na mentalidade -na ideologia, para usar termo em desuso- dominante.
Além disso, o atual papa não se limitou, como tantos de seus predecessores, a administrar o legado posto em suas mãos, mantendo um curso tradicional. Ao contrário, o período em que tem estado à frente da Igreja Católica traduz uma inflexão de rumo, quase uma ruptura com a tônica que prevalecia durante os dois pontificados anteriores.
O que mais saltou à vista foi a mudança de estilo. Nenhum papa jamais realizou tantas viagens como o atual nem utilizou como ele os recursos da moderna comunicação de massa. Certamente houve outros papas de personalidade forte, mas poucos imprimiram cunho tão pessoal à política da igreja, que João Paulo 2º reformou a seu gosto.
Em 1978, a eleição de um cardeal da Polônia, então sob tutela da União Soviética, sugeria que a crítica ao totalitarismo comunista ganharia novo relevo. De fato, atribui-se a João Paulo 2º um papel importante na derrocada das ditaduras do Leste Europeu, que foram caindo uma após outra, até que veio abaixo o regime na matriz.
Mas a nova orientação da igreja não se restringiu à política externa. A principal mudança ocorreu internamente, na meticulosa e bem-sucedida campanha que o papa empreendeu para liquidar a Teologia da Libertação e outras vertentes de esquerda. Ele deixa uma igreja muito mais "centrista" e outra vez ocupada com a sua função estritamente religiosa.
Teria ele pressentido, com base em sua experiência pessoal, que o socialismo era um castelo de cartas? Teria compreendido -antes mesmo de Thatcher, de Reagan e de Gorbatchov- que todo um sistema de idéias estava prestes a entrar em colapso e que era hora de a igreja se distanciar do desastre? Deixemos aos biógrafos responder a essas curiosidades.
Para seus apologistas, o papa salvou a igreja de uma contaminação ideológica que, oriunda da sociologia de esquerda, ameaçava deturpar sua vocação espiritual e envolvê-la nas lutas mundanas, ainda que, desta vez, do outro lado do balcão. A facção derrotada lamenta, claro, esse segundo afastamento em relação à mensagem "social" do Evangelho.
A política deste papa conservador foi estendida, com coerência sistemática, aos terrenos da moral e dos costumes. Nesse capítulo só faltou restaurar o uso do latim. Um dia a campanha contra os preservativos em meio a uma epidemia sexual talvez venha a ser acrescentada à lista dos crimes cometidos pelo Vaticano.
Ainda é cedo para saber se essa doutrina moral preserva a identidade histórica do catolicismo ou torna a igreja ainda mais distante da vida real dos fiéis. Por meio da Renovação Carismática e do Opus Dei -seus dois braços políticos-, o papa enfrentou as religiões neoprotestantes e o hedonismo da classe média. Duas batalhas que estão longe de ter sido ganhas.


Otavio Frias Filho escreve às quintas-feiras nesta coluna.


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