São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve haver um fundo público para financiar as campanhas eleitorais?

SIM

Contra a política venal e secreta

ROBERTO ROMANO

A corrupção raramente é punida nas urnas. Indivíduos vulgívagos e seus agrupamentos são premiados, o que ameaça qualquer República democrática. Tal realidade não é privilégio do Brasil. A licença ética deve-se em grande parte ao financiamento dos partidos.
Norberto Bobbio aponta a base dos malefícios eleitorais: todos os candidatos agem para conquistar o poder, mas boa parte deles, quando nos cargos, adquire vantagens privadas. No mercado político o domínio se consegue com votos. Um modo eficaz para ganhar semelhante "moeda" é "servir-se do mando para auferir benefícios, mesmo pecuniários, ao empregar as vantagens do poder. Este custa, mas rende. Se custa, deve render. O jogo é arriscado, em certos instantes ele custa mais do que rende, quando o candidato não se elege; mas ele rende mais do que custa" ("Quale il rimedio?", "L'Utopia Capovolta", La Stampa, 1990).
O político, quando a fiscalização é inoperante, compra votos. Depois vende recursos coletivos. A corrupção constitui um segredo... Conhecido pela sociedade inteira, mas não se podem indicar os nomes dos envolvidos. Apenas as CPIs, a vigilância do MP, a redobrada atenção dos contribuintes, a imprensa livre e os movimentos civis (como a Transparência Brasil) diminuem a opacidade em que germina o dito comércio.
O financiamento público das campanhas não produz milagres. Como todo remédio amargo, tem contra-indicações. Sempre é preciso aplicar um foco de luz nos assuntos eleitorais. A medida indicada impõe normas verificáveis na aplicação de recursos e mostra o caminho que vai do tesouro coletivo aos cofres das campanhas. As "dádivas" dos corruptores deixam de ser o arrimo dos partidos; a sombra da corrupção fica mais nítida no pano de fundo dos recursos oficiais.
O recurso público atenua a iniqüidade hoje existente na corrida eleitoral. O partido que preza a ética sempre sai em desvantagem diante dos que já venderam -em segredo- o exercício do cargo a interesses privados. Candidatos retos também dependem de propaganda e não chegam ao poder apenas com boa vontade. A política, hoje, passa pela mídia, e esta custa muito caro.
Os princípios éticos pertencem à ordem subjetiva e se comprovam apenas nos atos de governo. É naquelas ações que a fala dos eleitos adquire plena visibilidade. A dissimulação tem sido arma predileta das pessoas que execram determinados segmentos econômicos, mas na verdade são financiadas, no escuro, exatamente por eles. A direção econômica desvela os compromissos feitos à socapa. Existe a pletora dos partidos "de interesses a serviço de seus criadores e exploradores", que "fazem qualquer negócio, como bem demonstra a experiência de inúmeros pleitos eleitorais" (Goffredo Telles Jr., "O Povo e o Poder", Malheiros, 2003).
Agrupamentos éticos podem regredir ao status de partidos de interesses. Não existe "capital ético" amealhado no pretérito para garantir nenhum futuro, não importa o que faça um partido. A ética se afirma nos atos, e jamais com o palavrório dos que incensam o poder. E a licença nunca foi privilégio da política. Ela se apresenta mesmo nas igrejas mais veneráveis .
Até data recente, entretanto, as barganhas eleitorais favoreciam empresas e organismos cujo acesso não era uma impossibilidade absoluta para os fiscais do Estado e da ordem civil. Com as drogas e o terrorismo, as quadrilhas conseguem financiar políticos no Executivo e no Legislativo e ameaçam o Judiciário. Aplicar recursos públicos nas campanhas permite identificar o que, nelas, tem origem espúria. É um tênue cordão sanitário, que produz bons resultados quando os fiscais -especialmente a Justiça- sabem utilizá-lo.
Objeções são possíveis ao financiamento público das campanhas. A mais grave é a acomodação burocrática dos partidos, desde que atingida uma estatura que lhes permita concorrer sem riscos demasiados. Mas os partidos existem para a conquista do mando. Se um deles não se aplica à busca de controlar a direção estatal, certamente diminuirá, mesmo sem financiamento público.
Não existem panacéias para a política brasileira, dominada por oligarcas. Mas toda medida que diminua a opacidade política (e as relações dos partidos com o mercado lícito ou ilícito) é bem-vinda.
O caminho para atenuar a corrupção não vai do poder enquanto "mercadoria" à sua compra e venda. Os eleitores adquirem, nas eleições em que o vitorioso é corrupto, uma esperança ilusória contra o medo. Existe licença porque não imperam a segurança, o respeito e a translucidez no Estado; porque o pavor domina a sociedade e gera complacência com bandidos de colarinho branco que chegam aos palácios. Sábio Maquiavel: "O crime provoca o medo; o medo busca meios de proteção; estes reclamam partidos; os partidos criam as facções que dividem as cidades e originam a ruína dos Estados" ("Comentários à Primeira Década de Tito Lívio").


Roberto Romano, 58, é professor titular de ética e filosofia política na Unicamp.


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