São Paulo, sábado, 02 de outubro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Deve haver um fundo público para financiar as campanhas eleitorais?

NÃO

Riscos, falhas e falsas promessas

BRUNO SPECK

A experiência das democracias contemporâneas mostra que as fórmulas clássicas para suprir as necessidades de financiamento político (pequenas contribuições de filiados e simpatizantes) não são suficientes para o financiamento de organizações partidárias e competições eleitorais.
A distância entre capacidade de gerar receitas e necessidade de financiar gastos eleitorais se alargou em praticamente todas as democracias na segunda metade do século 20. Para cobrir esse déficit, partidos e candidatos recorreram a doações privadas de grande volume, tanto de pessoas físicas como de empresas. Os legisladores nos diferentes países reagem a essa prática e aos problemas decorrentes dela tentando equilibrar ideais democráticos com a real capacidade de implementação de regras.
O projeto de lei que tramita no Congresso é uma proposta radical, sem precedente em outros países. Pela proposta, o financiamento privado das eleições estaria proibido. Paralelamente, o valor do financiamento público dos partidos seria aumentado dos cerca de R$ 120 milhões ao ano, atuais, para R$ 850 milhões, a serem alocados em anos eleitorais. Seriam então os problemas notoriamente ligados ao financiamento eleitoral privado -corrupção, caixa dois e competição desigual entre candidatos- resolvidos com a introdução de um sistema de financiamento público exclusivo, cortando de vez a ligação perigosa entre política e dinheiro privado?
Essa proposta envolve vários riscos e não leva em conta a experiência acumulada no Brasil e em outros países. Primeiro, porque a vedação completa de qualquer outra fonte de financiamento poderá resultar numa legislação de fachada. Era assim antes de 1993, quando a lei proibia qualquer financiamento de campanha por empresas.
Segundo, o financiamento público exclusivo não muda nada em relação à prática do caixa dois em campanhas. Há muitos indícios de que essas doações ou vêm do caixa dois da empresa, ou são provenientes de atividades criminosas, ou representam investimentos cujos dividendos serão cobrados após a eleição. Essa constelação permanecerá inalterada em um sistema de financiamento público exclusivo.
Terceiro, a aposta no financiamento exclusivo por recursos públicos extrapola os riscos e desvantagens vinculados a esse tipo de financiamento. Ao receber recursos do Orçamento, o partido perde o incentivo de aumentar a sua base e buscar apoio entre os cidadãos. O financiamento público tem por definição um fortíssimo caráter "self-service". Os partidos tendem a definir ou redefinir os valores e não prestarão mais contas a filiados ou simpatizantes das suas propostas políticas.
Quarto, a exclusividade dos recursos públicos aumenta a responsabilidade sobre a forma de distribuição desses recursos. Quem receberá quanto? A forma atual de distribuição, que permanecerá com pequenas modificações, é questionável, porque aqueles que ganharam a última eleição também terão mais recursos disponíveis para o próximo pleito. No limite, essa fórmula pode levar a um círculo vicioso, tanto enfraquecendo sucessivamente a oposição, como fortalecendo os vencedores.
Quinto, em qualquer sistema que aloca recursos públicos surge automaticamente a possibilidade de usar a punição do partido através do corte dessas verbas, em função de problemas na correta alocação de recursos. O poder conferido à Justiça Eleitoral seria enorme. Não precisamos de muita imaginação para construir cenários em que o possível corte de recursos decidiria sobre o sucesso eleitoral de partidos ou candidatos. Conseqüentemente, a Justiça Eleitoral sofreria pressões políticas para implementar punições financeiras.
Sexto, o financiamento público exclusivo da competição eleitoral na proposta em questão é combinado com o financiamento privado dos partidos políticos. Na prática, a divisão entre o financiamento da competição eleitoral e o custeio permanente da máquina partidária se torna difícil. Há muitos vasos circulantes entre esses dois orçamentos. Manter dois sistemas com lógicas de financiamento tão diferentes um ao lado do outro pode ser um convite para achar soluções alternativas.
Creio que o assunto do financiamento político precisa de menos idealismo jacobino e uma forte dose de "Realpolitik". Na verdade, o Brasil já andou um bom pedaço nessa direção, a partir das reformas iniciadas em decorrência do escândalo Collor-PC. O sistema atual tem ainda falhas e é certo que reformar é preciso. O TSE teve um papel decisivo nesse processo, usando a sua competência normativa para transformar a prestação de contas sobre eleições de papel morto em peças acessíveis e transparentes para o público. A decisão de aplicar a mesma regra às contas partidárias, a partir de 2005, é um passo certeiro na mesma direção. É importante que o legislador mantenha esse rumo.


Bruno Wilhelm Speck, professor de ciência política na Unicamp, é conselheiro da Transparência Brasil.


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