São Paulo, terça-feira, 02 de outubro de 2007

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MARCOS NOBRE

Venezuela, Brasil

HÁ UMA CARICATURA da situação na Venezuela segundo a qual Hugo Chávez enfrentou as elites e dividiu o país. Em uma interpretação, tornou-se um tirano populista que minou as liberdades democráticas. Em outra, tornou-se o primeiro a se ocupar de distribuir renda e permitir a participação popular.
As coisas são sempre mais complicadas que isso. Mas a caricatura funciona como verdade no debate político de outros países.
No Brasil, a disputa política está longe de golpes de Estados, de não-renovação de concessões de TV, de milícias organizadas em trincheiras. Mas a caricatura venezuelana permanece como pano de fundo.
A era Lula consolidou um cenário em que a disputa se dá sobre margens e ritmos de redução da desigualdade sobre um consenso partilhado, que é o da política econômica e do gerenciamento político estabelecidos no segundo mandato de FHC. Colocar em questão os máximos e os mínimos das margens em disputa é o limite de radicalidade desse sistema tal como organizado hoje.
O uso da caricatura da situação venezuelana serve para afastar o debate desse limite possível de radicalidade. Reduz problemas importantes -como o dos padrões de distribuição de renda, no caso da CPMF, por exemplo- a disputas menores. O debate público fica travado em uma guerra de posições, e sua solução fica jogada para o terreno obscuro das negociações de balcão no Parlamento.
A oposição tenta colar a imagem de Lula a Chávez. Uma espécie de estratégia Regina Duarte de amedrontamento do eleitorado que apela para os preconceitos de classe mais desabridos. Lula usa a "venezuelização" a seu favor. Quando apareceu o movimento "Cansei", disse que ninguém colocava mais gente na rua que ele.
Para tirar o foco do episódio do mensalão (que ignorou solenemente) e para tentar mostrar perfil próprio, o PT resolveu apoiar o chamado plebiscito da Vale, aprovou a descriminalização do aborto e decidiu "acompanhar" a renovação de concessões de TV. Não faltaram figuras de primeiro escalão do partido e do governo para dizer imediatamente que eram decisões inócuas.
Na conturbada história da democracia no Brasil, é um avanço que haja figuras conservadoras a defender "a elite" no debate público. Mas isso mostra também que fazer a discussão em termos de um a favor ou contra "as elites" passou a ser um jogo ele mesmo conservador.
A "venezuelização" é hoje fogo de artifício. Serve à ilusão de que confrontos radicais estão em curso. Seu efeito real é apenas o de manter a política brasileira em fogo brando até as eleições de 2010.


MARCOS NOBRE escreve às terças-feiras nesta coluna.


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