São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Lição americana

Hoje votam os Estados Unidos. Para o Brasil, a lição mais importante do pleito americano -seja qual for o resultado- tem a ver com fé no potencial transformador da política. Muitos americanos não crêem no Estado e muitos -desinformados e inconscientes- não votam. A metade do país que vota acredita, porém, até com intensidade, em vida pública. Acredita porque a experiência contemporânea confirma o quanto é decisivo para a trajetória da nação o desfecho das lutas políticas.
Dois grandes projetos marcaram os últimos três quartos de século de história americana: o de Roosevelt e o de Reagan. Ambos demonstraram o poder da política para mudar o país. Ultrapassaram a rotina das pequenas composições. Definiram rumo, inicialmente descartado como extremista: não uma planilha, mas a idéia de uma direção e dos primeiros passos. Apesar de ainda contar com a simpatia de metade da nação, o Partido Democrata não consegue reanimar o projeto de Roosevelt ou substituí-lo. Em vez de oferecer proposta que atenda aos anseios da maioria trabalhadora, contenta-se em defender minorias e em suavizar a diretriz dos adversários. Já os Republicanos contrabalançam a antipatia criada por seus acertos plutocráticos recorrendo a estratégia de poder apoiada em três bases: a sensação de estar o país sitiado por mundo sobre o qual projeta seu poder, os ressentimentos contra o "liberalismo" dos Democratas em matéria de vida familiar e a desconfiança na eficácia do ativismo social e econômico dos governos.
Diferente é o que acontece em países europeus como a França e a Alemanha. Os governos social-democratas aderiram ao mesmo formulário neoliberal dos conservadores. No máximo, tentaram preservar, como última linha de defesa do modelo europeu, os direitos sociais. Nada -nem mesmo os mercados financeiros- os obrigou a essa rendição; simplesmente não vislumbraram alternativa. Falta de clareza ajudou a gerar excesso de medo. Não se entregou a esse ideário, porém, o eleitorado. Inconformado com a rendição dos governos, passou a repudiar todos eles. Desilusão com os governos favoreceu descrença na política. E deu vida à antipolítica dos nacionalistas de direita.
E o Brasil? Reproduz-se em facção influente da classe média a descrença européia na política. O discurso que difunde esse derrotismo é uma fantasia pseudo-realista. Lê-se nas linhas e nas entrelinhas de nossos jornais: os políticos são todos iguais; a idéia de projeto nacional é resquício romântico e salvacionista; conformemo-nos em cobrar modestas decências e eficiências. Não é a natureza eterna da política que empresta plausabilidade a essa mentira venenosa e servil: é a constatação circunstancial de que os que representariam a alternativa se renderam ao ideário de seus oponentes. E tanto é assim que ninguém no Brasil em 1889, 1930, 1945 ou 1964 se teria deixado enganar por essa cantiga de adormecer.
A solução é uma só: demarcar caminhos e lutar por eles. Temos de fazer, a nosso modo, o que fizeram os Estados Unidos em seus dois séculos de ascensão à primazia mundial: levantar escudo econômico, político e militar que proteja nossa insubordinação e nosso experimentalismo; acreditar na democratização de oportunidades como o grande motor do avanço nacional e ousarmos ser diferentes para podermos ser nós mesmos. Para isso, é preciso reconhecer que política é destino: o destino que nos damos.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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