São Paulo, terça-feira, 02 de novembro de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Um alerta perturbador

BOAVENTURA DE SOUSA SANTOS

Quem poderia imaginar que muitos cidadãos norte-americanos estivessem preocupados, às vésperas da eleição, com a possibilidade de fraude eleitoral, uma patologia usualmente atribuída às frágeis democracias do chamado Terceiro Mundo? A primeira e mais importante democracia da época moderna, que durante dois séculos pretendeu ser o exemplo a seguir por todo o mundo, atravessa, de fato, uma crise profunda. A democracia americana sofre de três problemas estruturais. O primeiro problema é o Colégio Eleitoral. Os EUA são dos poucos países onde os cidadãos não elegem diretamente o presidente da República; elegem um Colégio Eleitoral, constituído por 537 "grandes eleitores" a quem compete eleger o presidente. Assim, um candidato pode ganhar o voto popular e perder as eleições. Foi o que aconteceu em 2000: apesar de 50.996.039 eleitores terem votado em Al Gore e 50.456.141 em Bush, este último ganhou, com o voto de 271 grandes eleitores contra os 266 do adversário. Esse sistema aliena os cidadãos, não surpreendendo que os EUA sejam o país desenvolvido com as maiores taxas de abstenção.
O segundo problema é a estrutura decentralizada do processo eleitoral, variando de Estado para Estado o regime de inscrição nos cadernos eleitorais e o equipamento, o modo de votar e a verificação da regularidade do ato eleitoral. Só na Pensilvânia há cinco modos diferentes de votar. A ausência de uniformidade torna mais difícil a fiscalização, para não falar da Justiça Eleitoral.


Muito provavelmente Bush não foi eleito; foi, sim, escolhido pela Suprema Corte ante a passividade do Senado


O terceiro problema prende-se com o financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, que permite aos grandes interesses econômicos interferir a tal ponto na escolha e na sorte dos candidatos e na produção legislativa do Congresso que só não se fala de corrupção porque ela está legalizada.
Sobretudo o segundo e o terceiro problemas tornam o sistema vulnerável ao erro e à manipulação legal e ilegal. Exemplo da primeira é a lei que proíbe os ex-presidiários de votar, uma lei antiga, promulgada com o objetivo de impedir os negros de votar e que neste ano retirará o voto a 5 milhões de cidadãos, alguns dos quais saíram da prisão há várias décadas.
Mas o foco principal da preocupação dos democratas norte-americanos é a manipulação ilegal. Está hoje provado que houve fraude eleitoral no Estado da Flórida em 2000. Muito provavelmente Bush não foi eleito; foi, sim, escolhido pela Suprema Corte ante a passividade do Senado. Ora, o que aconteceu na Flórida em 2000 pode acontecer lá e em outros Estados em 2004. A fraude pode, assim, assumir várias formas: intimidação ou mesmo impedimento de votar; anulação irregular de votos; viciação dos programas eletrônicos de contagem de votos; impossibilidade de recontagem de votos pela ausência de boletins de voto em papel.
A fraude mais recentemente denunciada consiste no plano de interrogar sistematicamente, no dia das eleições, os novos recenseados oriundos de minorias étnicas sobre possíveis irregularidades do recenseamento. O objetivo é intimidar ou desencorajar alguns de votar ou atrasar a sua chegada às mesas de voto, de modo que, quando confrontados com o comprimento da fila, desistam de o fazer.
A um observador estrangeiro pode causar surpresa esse nível de disputa eleitoral e o recurso a táticas desesperadas para condicionar o resultado de uma eleição em que, segundo os critérios políticos europeus ou latino-americanos, um candidato se posiciona na centro-direita (Kerry) e o outro na extrema direita (Bush). A verdade é que, em termos de política interna, há muito em jogo para a indústria militar (o orçamento militar para combater o atual eixo do mal e o provável próximo -Castro, Chávez, Lula e Kirchner), médico-farmacêutica (impedir os consumidores de se organizarem para baratear os serviços e remédios ou importá-los da Europa ou do Canadá), energética (eliminando o que ainda resta da regulação e proteção ambiental) e para o capital financeiro (a privatização da Previdência e do sistema de aposentadoria).
Não deixa de ser irônico que o Centro Carter, tão diligente em fiscalizar a regularidade das eleições em tantas democracias "problemáticas" por esse mundo afora, assista impassível ou impotente aos problemas da democracia caseira. Apesar disso, não parece que desta vez seja possível cometer a fraude com a mesma desfaçatez do passado. Ante o fato de ser o campo republicano o suspeito de cometer fraude, os democratas solicitaram a presença de observadores internacionais para fiscalizar a regularidade das eleições, e o mesmo foi feito por importantes ONGs dos EUA.
Para mim, contudo, o mais significativo é o movimento que se está gerando na sociedade norte-americana, sobretudo entre os jovens, no sentido de proteger as eleições contra a fraude: são inúmeras as páginas na internet com informações sobre as fraudes e o modo de as detectar; estão sendo treinados cerca de 25 mil voluntários, dos quais 5.000 advogados, para fiscalizar as mesas de voto; estão sendo instaladas linhas telefônicas para onde podem ser denunciadas as suspeitas de fraude.
Entretanto foi criado um Conselho Consultivo para as Eleições Justas, o qual, se houver fraude nas eleições, acionará a "rede de resposta urgente" destinada a mobilizar os cidadãos por todo o país em defesa da democracia. Esse movimento é perturbador, mas é, ao mesmo tempo, encorajador, porque revela um novo fôlego democrático na pátria doente da democracia.

Boaventura de Sousa Santos, 63, sociólogo, é professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).


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