São Paulo, quarta-feira, 02 de novembro de 2005 |
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TENDÊNCIAS/DEBATES Decadência e enriquecimento
MARCIO POCHMANN
Associado ao movimento mais geral da decadência do país, nota-se também a expansão da ociosidade da mão-de-obra, seja pelo esvaziamento das vagas de maior escolaridade para a classe média, seja pelo desemprego em massa ou seja pela explosão da subocupação, que tem no posto de trabalho serviçal, como o doméstico, o de limpeza e o de vigilância, entre outros, a sua melhor expressão. Em 2003, por exemplo, havia 2,7 trabalhadores industriais para cada ocupação doméstica -em 1980, a relação era de 4,8 para cada ocupação doméstica. No caso da renda do trabalho, a situação é ainda mais grave, com uma redução próxima a um terço nos últimos 25 anos. Hoje em dia, sabe-se que a cada três reais que alimentam a economia nacional, um provém da remuneração do trabalho, diferentemente de 1980, quando o rendimento do trabalho representava exatamente a metade de toda a renda nacional. Não obstante o quadro geral de piora econômica e social, registra-se avanço no enriquecimento de poucas pessoas. Somente as famílias ricas, por exemplo, dobraram quantitativamente a partir de 1980 no país. Embora sejam poucos frente ao tamanho da população nacional, os ricos aumentam, fazendo do Brasil um paraíso de charlatões e rábulas, cuja riqueza se encontra cada vez mais a serviço da imposição do prestígio e da autojustificação do sucesso individual. Quando se analisa o seleto grupo dos endinheirados, descobre-se, por exemplo, que cerca de 40% dos ricaços chegam a essa confortável situação por meio da herança patrimonial. Em outras palavras, as grandes fortunas no Brasil não são mais ganhas por dispêndio de esforços úteis à nação, mas por resultado da simples condição privilegiada de proprietários hereditários. Da mesma forma, observa-se que os atuais detentores de riqueza são cada vez menos descendentes de atividades produtivas lícitas, decorrentes da inevitável e aceitável evolução do trabalho empreendedor. A sorte deles é que o país deixou -lamentavelmente- de exigir a comprovação de suas capacidades meritórias, pois os ricaços de hoje dificilmente teriam o mesmo sucesso na vida não fosse a corrosão do caráter do homem público em meio ao avanço do submundo privado e da especulação financeira com o dinheiro público. É no labirinto do submundo das fortunas ilícitas que parcela do meio empresarial se transforma em um covil diabólico, com saques às instituições, fraudes aos mercados e pilhagem nos negócios legítimos via o chamado "caixa dois". Numa sociedade selvática, os negócios legais são usados como "fachadas" que encobrem transações ilícitas, adulteram preços, medidas e produtos. Também gera propaganda enganosa e apropriação indébita a fim de fraudar impostos e condições isonômicas de competição, o que redireciona o código de ética para o dinheiro e o enriquecimento individual e imediato. É por isso que há dificuldades para localizar nos ricos de hoje algum sentimento de missão com o qual o país possa se identificar. A ganância pelo dinheiro os torna cada vez mais alienados, pois tudo o que possuem tende a se resumir ao dinheiro ou a sua incessante busca, salvo poucos casos especiais. Nesse sentido, não há como produzir um projeto de país capaz de possibilitar a inclusão do conjunto do povo frente ao atual padrão de enriquecimento com origem na especulação financeira, nas heranças patrimoniais e no submundo privado. Inversamente à concentração da riqueza, permanece intacto o déficit nos serviços públicos indispensáveis à vida civilizada. Mas, contrariando a maioria da população, que paga mais impostos, os ricaços sabem como torná-los mínimo, usando, sempre que necessário, a influência política e econômica. Mesmo que praticamente não paguem impostos, os ricos se beneficiam continuamente dos superávits primários do setor público, gerados com o fim de sustentar oficialmente o amplo processo de financeirização da riqueza. Na toada desse modelo econômico comprometido com as altas finanças e distante de uma reforma tributária que atue progressivamente sobre os ricos, prossegue intocável o processo de enriquecimento improdutivo. Simultaneamente, também deve continuar a decadência socioeconômica nacional. Alguns até poderão alegar que a situação atual não é de decadência ou, mesmo em sendo, teria brevidade. É claro que, se consideradas as sete décadas que constituíram o mais longo período de decadência nacional -verificado entre o final do ciclo do ouro, no século 18, e a ascensão da economia cafeeira, no século 19-, o lapso de tempo atual, que já dura um quarto de século, pode ser menor. Há sempre otimistas para tudo no Brasil. Marcio Pochmann, 43, economista, é professor do Instituto de Economia e pesquisador do Centro de Estudos Sindicais e de Economia do Trabalho da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas). Foi secretário do Desenvolvimento, Trabalho e Solidariedade da Prefeitura de São Paulo (gestão Marta Suplicy). Texto Anterior: TENDÊNCIAS/DEBATES Bertrand de Orleans e Bragança: A CNBB não pode ser discriminada Próximo Texto: Painel do leitor Índice |
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