São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2004

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DEMÉTRIO MAGNOLI

A nação segundo Lula

No passado recente, a direita anacrônica não escondia seu desdém diante de Lula, esse líder destituído de diplomas ou títulos, "despreparado" e "semi-analfabeto". Hoje, essa gente compartilha a mesa de jantar de Lula, negocia cargos nos altos escalões da República e enaltece a "história de vida" do metalúrgico que virou presidente. Enquanto isso, o velho cantochão ressurge no lugar mais inesperado, por meio das vozes de uma esquerda que se equilibra precariamente nas vertentes da montanha do poder.
O líder do MST João Paulo Rodrigues qualificou Lula de "amigo histórico da causa" e "aliado" dos sem-terra, lançando a culpa pela lentidão dos assentamentos no ministro Antonio Palocci e no presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que "retiram verbas do social". O demitido Carlos Lessa, um neo-nacionalista e neo-populista, segundo seu curioso auto-retrato, descobriu repentinamente que "Lula está sendo enganado pela elite brasileira e pela elite mundial" numa "manobra astuciosa para frustrar os sonhos populares". Eis a nova versão do antigo preconceito, que agora narra a história do herói popular iludido, nobre de coração, vazio de idéias.
Lula, contudo, tem uma concepção de nação e de futuro. No núcleo do seu pensamento político encontra-se a idéia da nação como unidade orgânica, sentimental e hierárquica, que se traduz pela metáfora da família, repetida amiúde nos improvisos presidenciais. Nessa moldura, a dissensão é um desvio infantil tolerável: o presidente trata o povo, especialmente "os mais pobres", como seus próprios filhos. A nação-família não comporta partidos ideológicos. Lula sonha, como declarou, com a unificação entre PT e PSDB e, desde já, monta uma "coalizão" fisiológica com PMDB, PTB, PP e clã Sarney.
A nação-família persegue o "bem comum" e opera por meio do consenso. Empresários, sindicatos e Estado negociam num foro tripartite as reformas sindical e trabalhista. Pela via das acalentadas Parcerias Público-Privadas, Estado e empresários investirão juntos nas obras de infra-estrutura, erguendo uma nova casa para o Brasil. Os protestos das classes médias e dos trabalhadores organizados evidenciam egoísmo e irritam o presidente. A miséria é outra coisa: uma fonte de perigosas tensões sociais e uma nódoa na imagem da nação. A cura desse mal está no Fome Zero, um guarda-chuva de políticas assistenciais, uma marca publicitária de gênio e uma plataforma de política externa.
O Brasil sempre foi o país do futuro. O Brasil de Lula é uma mudança na "história da humanidade": a nação que desperta de um longo sono, "muda a geografia do mundo" e antecipa o futuro. A nova potência quer o comércio que traz riqueza, mas, sobretudo, almeja um lugar ao sol na comunidade das nações. A campanha frenética pela cadeira no Conselho de Segurança da ONU é uma jornada em busca de respeito e de prestígio. Isso, na visão de Lula, bem que vale a sustentação militar de um regime ilegal e violento no Haiti.
O pensamento político de Lula não é original. Seu substrato é salvacionista. Suas raízes repousam no patrimonialismo brasileiro tradicional. Seus conceitos recombinam, no caldo de uma orientação econômica ultraliberal, fragmentos do corporativismo de Vargas, do desenvolvimentismo conservador de JK e do projeto de potência dos militares. Uma coisa é certa: Lula não é um fantoche e governa com seu próprio programa.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

magnoli@ajato.com.br


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