São Paulo, quinta-feira, 02 de dezembro de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Dois machados

RIO DE JANEIRO - Aproveito os dias de tratamento médico para reler com calma a obra de Machado de Assis. São vários volumes, numa edição bem apresentada. Machado é de longe o nosso maior escritor, o único de dimensão universal. Digo universal e não internacional -que são coisas e qualidades diversas.
Machado é mal traduzido e divulgado no exterior. Não importa. É o nosso único escritor que atinge a essência, o fundamento do ser humano, da humana contingência, do absoluto não-sentido da faina que nos oprime.
Seus contos e romances são repetitivos, as situações e os personagens são quase os mesmos, mesmas as soluções ou não-soluções. Mas o que vale em Machado são os cacos, os "punti luminosi" que recheiam sua obra.
Numa apreciação mais isenta, faço reparos aos critérios editoriais que reúnem a sua produção de circunstância, muita crônica e muito conto feito em cima da perna. São pesquisadores que, entre uma e outra tiragem das obras completas do mestre, acham originais de Machado em gavetas ou revistas esporádicas.
É uma produção de qualidade inferior. As editoras reconhecem isso, agradecem aos pesquisadores, mas publicam textos que Machado escreveu com algum constrangimento, por cortesia.
Compreende-se a posição do escritor: ele vivia disso (seu salário no Ministério era pequeno) e nem sempre estava adrede a produzir uma obra-prima. Os autores têm o direito de escolher o que desejam passar para o livro. Depois de alguns anos de morto, cai em domínio público. Machado é vítima de uma rapinagem nem sempre escrupulosa (existem boas rapinagens).
Limpo a barra do R. Magalhães Jr., que fez as suas escavações a sério e em nível crítico. Entretanto, para aumentar o número de volumes, editoras não-sérias limitam-se a informar que inéditos ou páginas esquecidas acabam de ser descobertas -e aí temos um sub-Machado, até certo ponto um anti-Machado. Coisas da vida -que formam a vida das coisas.


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