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Ano 1000, ano 2000
BORIS FAUSTO
Haveria algo em comum entre a humanidade ocidental que viveu o ano
1000 da Era Cristã e a que vive, em
nossos dias, a entrada do ano 2000?
Aparentemente, a resposta óbvia é
negativa. Em dez séculos, as transformações do mundo foram gigantescas,
em qualquer plano que se imagine: no
desenvolvimento das forças produtivas -a tecnologia em primeiro lugar-, na complexidade social, na revolução dos meios de comunicação,
na visão do mundo e do além-mundo
etc.
Entretanto, vale a pena aprofundar
um pouco mais a resposta, começando pelo ano 1000. A historiografia
francesa, com Marc Bloch à frente, demonstrou que a concentração dos terrores humanos no ano 1000 é uma
versão simplificadora. É necessário
considerar, como diz Georges Duby,
um meio século do Ocidente europeu,
entre aproximadamente os anos 980 e
1040, e não apenas um ano -uma
época em que o Ocidente é uma vasta
área de florestas, de tribos, de feitiçaria, de reizinhos que se odeiam e se
traem. Mas, apesar da ressalva, a chegada do ano 1000 ampliou os temores
cristalizados na expectativa do fim do
mundo, como indicam textos reveladores de um estado de espírito e de
ações humanas.
Nos dias de hoje, não há tanta gente
que acredite no próximo fim dos tempos, apesar da expectativa gerada pelas seitas religiosas ou pelas profecias
de Nostradamus. Os temores atuais
têm um conteúdo terreno, potenciados pela chegada do ano 2000, compondo-se de dois ramos básicos: um
ligado à informática e outro a práticas
sociopolíticas.
O primeiro caso, quase não seria
preciso dizer, é o da ameaça do "bug",
do milênio, cujo alcance ninguém
conseguia prever, com segurança,
dois dias antes da passagem do ano,
quando escrevo estas linhas. A ele vem
juntar-se uma perversa ação humana,
ou seja, o presumível ataque virótico
de hackers, com o objetivo de comemorar, a seu modo, a entrada do ano
2000.
O segundo caso é o da ameaça de
grupos terroristas que estariam se preparando para desfechar uma ofensiva,
em várias partes do mundo. Tanto em
uma situação quanto na outra, o temor não se situa apenas no plano do
imaginário. De um lado, um erro programático de décadas passadas gerou
a insegurança presente. De outro, não
há por que descartar a possibilidade
de uma "comemoração terrorista",
praticada por personagens vindos de
fora ou por grupos situados no âmbito
interno dos países, considerando-se
os indícios existentes.
Poderíamos então afirmar que os temores do ano 1000 e os do ano 2000
não têm nada em comum, inserindo-se em contextos socioculturais contrastantes? Não é bem assim. Passados
dez séculos, guardadas todas as diferenças, permanece no imaginário humano um substrato de insegurança,
associado à percepção ou à intuição
da precariedade da vida.
Como diz o ditado, o mundo não
acaba, somos nós que acabamos. Tentando interpretar, o "mundo" é aí sinônimo do coletivo "humanidade";
"nós" representa a existência efêmera
de cada um.
Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.
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