São Paulo, Segunda-feira, 03 de Janeiro de 2000


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Ano 1000, ano 2000

BORIS FAUSTO

Haveria algo em comum entre a humanidade ocidental que viveu o ano 1000 da Era Cristã e a que vive, em nossos dias, a entrada do ano 2000?
Aparentemente, a resposta óbvia é negativa. Em dez séculos, as transformações do mundo foram gigantescas, em qualquer plano que se imagine: no desenvolvimento das forças produtivas -a tecnologia em primeiro lugar-, na complexidade social, na revolução dos meios de comunicação, na visão do mundo e do além-mundo etc.
Entretanto, vale a pena aprofundar um pouco mais a resposta, começando pelo ano 1000. A historiografia francesa, com Marc Bloch à frente, demonstrou que a concentração dos terrores humanos no ano 1000 é uma versão simplificadora. É necessário considerar, como diz Georges Duby, um meio século do Ocidente europeu, entre aproximadamente os anos 980 e 1040, e não apenas um ano -uma época em que o Ocidente é uma vasta área de florestas, de tribos, de feitiçaria, de reizinhos que se odeiam e se traem. Mas, apesar da ressalva, a chegada do ano 1000 ampliou os temores cristalizados na expectativa do fim do mundo, como indicam textos reveladores de um estado de espírito e de ações humanas.
Nos dias de hoje, não há tanta gente que acredite no próximo fim dos tempos, apesar da expectativa gerada pelas seitas religiosas ou pelas profecias de Nostradamus. Os temores atuais têm um conteúdo terreno, potenciados pela chegada do ano 2000, compondo-se de dois ramos básicos: um ligado à informática e outro a práticas sociopolíticas.
O primeiro caso, quase não seria preciso dizer, é o da ameaça do "bug", do milênio, cujo alcance ninguém conseguia prever, com segurança, dois dias antes da passagem do ano, quando escrevo estas linhas. A ele vem juntar-se uma perversa ação humana, ou seja, o presumível ataque virótico de hackers, com o objetivo de comemorar, a seu modo, a entrada do ano 2000.
O segundo caso é o da ameaça de grupos terroristas que estariam se preparando para desfechar uma ofensiva, em várias partes do mundo. Tanto em uma situação quanto na outra, o temor não se situa apenas no plano do imaginário. De um lado, um erro programático de décadas passadas gerou a insegurança presente. De outro, não há por que descartar a possibilidade de uma "comemoração terrorista", praticada por personagens vindos de fora ou por grupos situados no âmbito interno dos países, considerando-se os indícios existentes.
Poderíamos então afirmar que os temores do ano 1000 e os do ano 2000 não têm nada em comum, inserindo-se em contextos socioculturais contrastantes? Não é bem assim. Passados dez séculos, guardadas todas as diferenças, permanece no imaginário humano um substrato de insegurança, associado à percepção ou à intuição da precariedade da vida.
Como diz o ditado, o mundo não acaba, somos nós que acabamos. Tentando interpretar, o "mundo" é aí sinônimo do coletivo "humanidade"; "nós" representa a existência efêmera de cada um.


Boris Fausto escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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