São Paulo, segunda-feira, 03 de janeiro de 2005

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LAURA CAPRIGLIONE

Feminismo borocoxô

A legislação brasileira sobre o aborto vem de 1940. Foi elaborada sob o Estado Novo de Getúlio Vargas. Ali estão previstas punições para quem voluntariamente provocar em si a interrupção da gestação e para o chamado "aborteiro", aquele que provoca o aborto mediante consentimento da gestante. As penas nesses casos vão até quatro anos de reclusão.
Também nela constam duas situações em que essas penas não seriam aplicadas: em caso de estupro ou de risco de vida para a mãe.
Nas duas exceções, duas trombadas com a santa madre igreja, para a qual as vidas da mãe e do embrião são absolutamente iguais, sendo impossível escolher uma em detrimento da outra.
As leis do velho caudilho sobrevalorizaram a vida da mulher e visaram à redução do sofrimento da vítima do estupro, que de outro modo seria obrigada a carregar em si o produto da violência durante toda a gestação. Quem quisesse e se encaixasse nessas exceções poderia abortar um feto na maior parte das vezes perfeitamente compatível com a vida.
Agora, compare-se a lei de 1940 com a celeuma em torno do feto anencéfalo, inviável para a vida em 100% dos casos, conforme absoluto consenso médico. Os incansáveis defensores da tese segundo a qual "a vida é sempre um dom divino e tem de ser preservada acima de todas as coisas" querem continuar obrigando o Brasil a partilhar essa crença e as mulheres a levar a gestação de anencéfalos a termo, mesmo esse termo sendo a dor e a morte.
Aí, quando essa discussão ainda nem teve um fim, já que o Supremo Tribunal Federal (STF) não se pronunciou até o momento sobre o mérito da questão, eis que, neste mês de janeiro, deverá se constituir o Grupo de Trabalho (GT) patrocinado pelo governo federal. Ele reunirá representantes da sociedade civil, do Congresso Nacional e do Executivo. Convocará audiências públicas sobre as formas de regulamentação do aborto que devem existir (se é que há alguma). No final dos trabalhos, poderá encaminhar ao Congresso propostas de mudanças na lei.
Já existem 33 outras propostas encalhadas no Legislativo. Todas paradinhas lá por força do lobby religioso, que mobiliza caravanas para Brasília toda vez que se menciona a simples hipótese de retomada do assunto.
Não há por que esperar que, desta vez, com o GT, seja diferente, caso os defensores de uma ampla revisão, com a liberalização da lei, insistam em permanecer calados.
As militantes das causas feministas, que se contam aos milhares, hoje estão refesteladas nos cargos públicos das secretarias de assuntos da mulher espalhadas pelo país, ou em conselhos de ONGs, muitas mantidas por doações internacionais. Não tiveram tempo ou disposição para enfrentar os adversários dos direitos das gestantes de fetos anencéfalos -dava para contar nos dedos das mãos os participantes dos poucos atos públicos chamados para tanto. Por que se disporiam a sair a campo por metas tão mais difíceis, como a descriminalização de toda e qualquer forma de interrupção voluntária da gravidez, que dizem defender?
Até os anos 70, maridos matavam mulheres, alegavam que tinham sido "traídos", que agiram em "legítima defesa da honra" e eram absolvidos. Uma mulherada foi para as ruas e, aos gritos de "quem ama não mata", conseguiu mudar isso. Não havia ONGs, uma sigla ainda por ser inventada, nem cargos públicos para ativistas. Só havia solidariedade.


Laura Capriglione é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de João Sayad, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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