|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LAURA CAPRIGLIONE
Feminismo borocoxô
A legislação brasileira sobre o aborto vem de 1940. Foi elaborada sob o Estado Novo de Getúlio
Vargas. Ali estão previstas punições
para quem voluntariamente provocar
em si a interrupção da gestação e para
o chamado "aborteiro", aquele que
provoca o aborto mediante consentimento da gestante. As penas nesses
casos vão até quatro anos de reclusão.
Também nela constam duas situações em que essas penas não seriam
aplicadas: em caso de estupro ou de
risco de vida para a mãe.
Nas duas exceções, duas trombadas
com a santa madre igreja, para a qual
as vidas da mãe e do embrião são absolutamente iguais, sendo impossível
escolher uma em detrimento da outra.
As leis do velho caudilho sobrevalorizaram a vida da mulher e visaram à
redução do sofrimento da vítima do
estupro, que de outro modo seria
obrigada a carregar em si o produto
da violência durante toda a gestação.
Quem quisesse e se encaixasse nessas
exceções poderia abortar um feto na
maior parte das vezes perfeitamente
compatível com a vida.
Agora, compare-se a lei de 1940 com
a celeuma em torno do feto anencéfalo, inviável para a vida em 100% dos
casos, conforme absoluto consenso
médico. Os incansáveis defensores da
tese segundo a qual "a vida é sempre
um dom divino e tem de ser preservada acima de todas as coisas" querem
continuar obrigando o Brasil a partilhar essa crença e as mulheres a levar a
gestação de anencéfalos a termo, mesmo esse termo sendo a dor e a morte.
Aí, quando essa discussão ainda
nem teve um fim, já que o Supremo
Tribunal Federal (STF) não se pronunciou até o momento sobre o mérito da questão, eis que, neste mês de janeiro, deverá se constituir o Grupo de
Trabalho (GT) patrocinado pelo governo federal. Ele reunirá representantes da sociedade civil, do Congresso Nacional e do Executivo. Convocará audiências públicas sobre as formas
de regulamentação do aborto que devem existir (se é que há alguma). No
final dos trabalhos, poderá encaminhar ao Congresso propostas de mudanças na lei.
Já existem 33 outras propostas encalhadas no Legislativo. Todas paradinhas lá por força do lobby religioso,
que mobiliza caravanas para Brasília
toda vez que se menciona a simples hipótese de retomada do assunto.
Não há por que esperar que, desta
vez, com o GT, seja diferente, caso os
defensores de uma ampla revisão,
com a liberalização da lei, insistam em
permanecer calados.
As militantes das causas feministas,
que se contam aos milhares, hoje estão refesteladas nos cargos públicos
das secretarias de assuntos da mulher
espalhadas pelo país, ou em conselhos
de ONGs, muitas mantidas por doações internacionais. Não tiveram tempo ou disposição para enfrentar os adversários dos direitos das gestantes de
fetos anencéfalos -dava para contar
nos dedos das mãos os participantes
dos poucos atos públicos chamados
para tanto. Por que se disporiam a sair
a campo por metas tão mais difíceis,
como a descriminalização de toda e
qualquer forma de interrupção voluntária da gravidez, que dizem defender?
Até os anos 70, maridos matavam
mulheres, alegavam que tinham sido
"traídos", que agiram em "legítima
defesa da honra" e eram absolvidos.
Uma mulherada foi para as ruas e, aos
gritos de "quem ama não mata", conseguiu mudar isso. Não havia ONGs,
uma sigla ainda por ser inventada,
nem cargos públicos para ativistas. Só
havia solidariedade.
Laura Capriglione é repórter especial. Hoje, excepcionalmente, não é publicado o artigo de
João Sayad, que escreve às segundas-feiras nesta coluna.
Texto Anterior: Rio de Janeiro - Carlos Heitor Cony: Grandes esperanças Próximo Texto: Frases Índice
|