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TENDÊNCIAS/DEBATES
Fenomenologia do lulismo
RICARDO ANTUNES
O sentido progressista do lulismo, presente em sua história, exauriu-se em seu passado; o traço conservador se avoluma no presente
UM DOS MAIS argutos analistas
da política do século 20, o italiano Antonio Gramsci, tecendo considerações sobre o cesarismo/bonapartismo, que considerava sinônimos, disse certa feita que esse fenômeno político, no qual aflora com
destaque a figura do "chefe carismático", poderia assumir uma forma progressista ou reacionária: a impulsão
fundamental dada pelas forças sociais de sustentação conferia um sentido de progresso ou de reação. César
e Napoleão I seriam exemplos progressistas, e Napoleão III e Bismarck
estariam atados ao universo reacionário.
Este fenômeno esparramou-se pelo mundo afora, chegando aos trópicos. Perón, na Argentina, e Vargas, no
Brasil, foram emblemáticos. Antes tivemos o curto ensaio do florianismo
militar durante a "República da Espada".
Poderíamos lembrar também, no
espectro mais à direita, do janismo,
externando um moralismo presente
em setores da direita brasileira e do
ademarismo, mais ancorado em setores do lumpesinato que também vislumbravam nas dádivas do Estado a
alternativa para a sobrevivência.
João Goulart e Leonel Brizola marcaram forte presença: o janguismo e o
brizolismo foram herdeiros "de esquerda" do getulismo, cimentados
pelo ideário nacionalista, o primeiro
mais moderado, e o segundo mais
acentuadamente reformista. Collor
foi um espasmo, uma espécie de janismo que floresceu nos grotões.
Quebrou-se logo e ensaia um retorno
localizado, depois de longa invernada. E qual, então, o significado maior
do lulismo, fenômeno relativamente
recente?
Se uma resposta mais conclusiva
ainda é difícil, é possível ensaiar alguns caminhos. Poder-se-ia dizer, retomando a formulação gramsciana
com a qual iniciamos esse artigo, que
o lulismo mescla elementos progressistas e conservadores (e não reacionários). O seu sentido progressista,
presente em sua história, entretanto,
exauriu-se em seu passado. O traço
conservador se avoluma no presente.
Sua máxima de que, quando se chega
aos sessenta anos na "esquerda é porque tem problemas", é expressão fenomênica do seu conservantismo dominante.
Se nos anos 1970/80 a autêntica espontaneidade de Lula o consolidou
como o mais importante líder operário, neste novo milênio sua espontaneidade, esvaziada de sua origem, é
preenchida pela contingência e pela
vacuidade. Além de messiânico, capaz de "falar direto com Deus", tornando prescindível o partido que ajudou a criar, o lulismo é expressão de
um pragmatismo que se molda às circunstâncias, que se atola no mesmismo e estanca no colaboracionismo.
Não é por acaso que o único traço que
Lula tem feito questão de repetir, em
relação ao seu passado, é que era um
conciliador, esquecendo-se que sua
vitalidade floresceu por sua prática
de confrontação.
Alguém poderia dizer que a atual
política de alianças de Lula também
fora exercitada por outros políticos
com carismáticos, como Leonel Brizola. Vale lembrar, como o líder dos
pampas gostava de dizer, que poderia
se aliar com qualquer um "porque tinha luz própria". Já a lanterna de Lula é de baixa amplitude; contenta-se
com uma profusão de momentos "catárticos" em que viceja o estancamento e aumenta o regozijo dos áulicos. Seu governo de coalizão, abarcando um leque que vai de setores da
esquerda a vários espectros da direita
(malufiana e delfiniana inclusive,
dois símbolos de monta), caminha
celeremente para a colisão.
Com dotes de ventríloquo, nas
poucas vezes em que recebe os movimentos sociais, fala nos pobres. Em
plenário requintado, lasca neodarwinismo político para deleite da malta.
Freqüentemente resvala para o pícaro. Se não bastasse sua recusa "madura" à esquerda, sua conhecida aversão
ao trabalho intelectual, em breve poderá reeditar uma frase do ex-governador de São Paulo, Paulo Egídio, que
gostava de se definir como "radical de
centro".
O apoliticismo sindical de Lula,
também presente em sua origem, gerou, enfim, o lulismo, um pragmatismo desprovido do mais remoto radicalismo. O que parece ser um elemento central quando se procura
compreender um pouco de fenomenologia do lulismo.
RICARDO LUIZ COLTRO ANTUNES, 53, é professor
titular de sociologia do trabalho do Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas da Unicamp (Universidade de
Campinas). É autor, entre outras obras, de "Riqueza e
Miséria do Trabalho no Brasil" (Boitempo).
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