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A cerveja e o assassinato do feminino
BERENICE BENTO
Com raras exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase desnuda, a cerveja gelada e o homem ávido de sede.
HÁ MUITAS formas de se assassinar uma mulher: revólveres,
facas, espancamentos, cárcere
privado, torturas contínuas. Mesmo
com um ativismo feminista que tem
pautado a violência contra as mulheres como uma das piores mazelas nacionais, a estrutura hierarquizada das
relações entre os gêneros resiste, revelando-nos que há múltiplas fontes
que alimentam o ódio ao feminino.
Como não ficar estarrecida com a
reiterada violência contra as mulheres nos comerciais de cerveja? Com
raras exceções, a estrutura dos comerciais não muda: a mulher quase
desnuda, a cerveja gelada e o homem
ávido de sede. As campanhas são direcionadas para o homem, aquele que
pode comprar.
Alguns exemplos: uma mulher faz
uma pequena dissertação sobre a cerveja para uma audiência masculina,
incrédula de sua inteligência. Logo o
mal-entendido se desfaz: claro, uma
mulher não poderia saber tantas coisas se tivesse como mentor um homem; a mulher é engarrafada, transformada em cerveja; um mestre obsceno infantiliza e comete assédio moral contra uma discípula; ela é a BOA.
Quem? O quê? A mulher ou a cerveja?
Todos os comerciais são de cervejas
diferentes e estão sendo exibidas simultaneamente.
Nesses comerciais não há metáforas. A mulher não é "como se fosse a
cerveja": é a cerveja. Está ali para ser
consumida silenciosamente, passivamente, sem esboçar reação, pelo homem. Tão dispensável que pode, inclusive, ser substituída por uma boneca sirigaita de plástico, para o júbilo
de jovens rapazes que estão ansiosos
pela aventura do verão.
Se já criminalizamos alguns discursos porque são violentos, não é possível continuarmos passivamente consumindo discursos misóginos a cada
dia, como se o mundo da televisão não
estivesse ligado ao mundo real, como
se as violências ali transmitidas tivessem fim no click do controle remoto.
Embora a matéria-prima para elaboração desses comerciais esteja nas
próprias relações sociais, nas performances ali apresentadas há uma potencialização da violência. Não há
uma disjunção radical entre violência
simbólica e física. Há processos de retroalimentação.
A força da lei já determinou que os
insultos racistas conferem ao emissor
a qualidade de racista. Também caminhamos para a criminalização da
homofobia em suas múltiplas manifestações, inclusive dos insultos. Por
que, então, devemos continuar repetidas vezes ao longo do dia a escutar
"piadas" misóginas, alimentando a
crença na superioridade masculina
sem uma punição aos agressores?
Sabemos da força da palavra para
produzir o que nomeia, sabemos que
uma piada homofóbica, racista, está
amarrada a um conjunto de permissões sociais e culturais que autoriza o
piadista a transformar o outro em
motivo de seu riso. Agora, é incalculável o estrago que imagens reiteradas
de mulheres quase desnudas, que não
falam uma frase inteligente, que estão ali para servir a sede masculina,
invisibilizadas em duas tragadas, provocam na luta pelo fim da violência
contra as mulheres.
Da mesma forma que o "piadista"
racista e/ou homofóbico acha que tudo não passa de "brincadeira", o marqueteiro misógino supõe que sua
"obra-prima" apenas retrata uma
verdade aceita por todos, inclusive
por mulheres: elas existem para servir aos homens. E como é uma verdade aceita por todos, por que não brincar com ela? Ou seja, nessa lógica, ele
não estaria fazendo nada mais do que
reafirmar algo posto. Será? Não é
possível que defendam aquela sucessão de imagens violentas como "brincadeiras".
Essa ingenuidade não cabe
a alguém que sabe a força da imagem
para criar desejos.
O que pensam os formuladores dos
comerciais? Que tipo de mulheres
habita seus imaginários? Por que há
essa obsessão pelos corpos femininos? Será que eles ainda pensam que
as mulheres não consomem cerveja?
Não se trata de negar a mulher-consumível, coisificada, pela mulher consumidora, mas de apontar os limites
de uma estrutura de comercial que
peca inclusive em termos mercadológicos.
Tal qual o assassino que matou sua
esposa acreditando que sua masculinidade está ligada necessariamente à
subordinação feminina, a cada gole
de mulher, o homem sente-se, como
em um ritual, mais homem. Conforme ele a engole, ela desaparece de cena para surgir a imagem de um homem satisfeito, feliz; afinal, matou
sua sede. É um massacre simbólico ao
feminino. É uma violência que alimenta e se alimenta da violência presente no cotidiano contra as mulheres.
BERENICE BENTO é doutora em sociologia, pesquisadora
associada do Departamento de Sociologia da UnB e
autora do livro "A Reinvenção do Corpo: sexualidade e
gênero na experiência transexual".
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