São Paulo, domingo, 03 de janeiro de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Copenhague, as decepções e o direito

CALIXTO SALOMÃO FILHO


A discussão sobre o instituto jurídico da propriedade não é uma questão ideológica, mas uma necessidade técnica


OS RESULTADOS decepcionantes da conferência de Copenhague ensinam algumas lições amargas, das quais, paradoxalmente, podem ser retiradas algumas perspectivas de ação.
A principal lição, na verdade, nada tem de nova. O meio ambiente é, por excelência, o reino das externalidades sociais. Isso significa que há poucos incentivos econômicos ao comportamento ambientalmente correto. A base industrial concentrada remunera e incentiva as formas atuais de produção, fortemente baseadas em consumo energético e em emissão de CO2. A concentração econômica faz com que existam monopólios e oligopólios extremamente poderosos, influentes e resistentes a qualquer mudança. A consequência é não apenas um comportamento individual de muitas empresas avesso a grandes transformações na forma de produção. Significa também uma enorme pressão sobre governos para que não assumam compromissos firmes nesse setor.
Restam então duas alternativas. A primeira é esperar que grandes desastres naturais mudem essa equação, obrigando estruturas empresariais a se moverem e governos a se libertarem.
A segunda alternativa é mais razoável e inteligente. Menos centralizada, implica recapacitar o direito para garantir a criação de ordem econômica mais apta a transformações que garantam a sobrevivência ambiental.
Essa alternativa envolve várias estratégias. Procurarei concentrar-me em três das mais importantes.
A primeira envolve a discussão do instituto jurídico da propriedade. Rediscuti-lo não é uma questão ideológica, mas uma necessidade técnica. A mudança tecnológica na sociedade nos últimos séculos não foi acompanhada nem de longe pela mudança de suas formas de organização jurídica, em especial da propriedade. Particularmente, a ideia de livre utilização de bens naturais, que poderiam ser livremente utilizados -ou em certos casos até livremente apropriados-, é parte integrante dessa concepção clássica e ultrapassada.
A realidade de escassez tem de mudar radicalmente esse cenário. Bens são escassos, seja para sua apropriação, seja para sua utilização. Aí incluem-se desde a terra -propriedade produtiva e florestas- até o ar e a água. É imperiosa a elaboração de uma regulamentação específica para os bens comuns (hoje só reconhecidos em certos setores regulamentados) e para os bens particulares, mas que geram efeitos coletivos, não mais servindo só o recurso à vaga cláusula da função social da propriedade.
A segunda estratégia jurídica deve permitir uma segunda revolução tecnológica, agora voltada às tecnologias verdes, capazes de salvar o planeta. A primeira revolução técnica, a Industrial, precisou suplantar grandes dificuldades. À época, o desafio era segregar o que já existia na natureza do novo e original, com efeitos industriais. As patentes originariamente fundaram-se então na industriabilidade e na novidade das invenções.
Essa regra não é útil para as novas necessidades. Hoje é preciso segregar setores em que existe alta concorrência tecnológica. Nesses, as patentes não apenas não são necessárias como representam entrave ao acesso público a bens muitas vezes de grande necessidade coletiva (por exemplo, medicamentos). Para eles, não é necessária a existência de patentes. A simples concorrência pela permanência no mercado já gera o progresso tecnológico. Para outros, em que, ao contrário, ainda é escasso o estímulo econômico para invenções, pois exigem mudança radical no estado da técnica, patentes podem ser necessárias. Mas não só. É necessário também um direito premial, para produtores e consumidores, que possibilite economicamente a elaboração e a utilização de invenções que utilizem energias limpas na fabricação e no consumo de bens (aí incluído o processo de reciclagem).
Finalmente, o terceiro (mas talvez mais importante) grande nó é a pobreza. O direito deve enfrentar com prioridade a questão do combate à pobreza. Não é possível nem legítimo exigir de alguém vivendo abaixo da linha de pobreza a não utilização predatória da única fonte acessível de sobrevivência: o ambiente que o cerca.
É necessário então, entre outras coisas, uma abordagem corajosa das estruturas econômicas existentes que permita identificar não apenas, como querem os economistas, a sua eficiência produtiva mas sobretudo a sua ineficiência social.
Estruturas econômicas menores e menos concentradas (na agricultura, na indústria) podem ser capazes de conciliar justiça social e criatividade econômica, com maior flexibilidade para atender as necessidades e as vocações ambientais de cada região.
O tempo urge e não mais admite um direito passivo, mero reprodutor de decisões tomadas em outras esferas. Um conjunto de normas, oriundas não necessariamente do Estado, mas do ativismo de organizações e cidadãos conscientes e da coragem de juízes e reguladores, precisa surgir. O objetivo é animador: a sobrevivência da espécie.


CALIXTO SALOMÃO FILHO, 44, é professor titular de direito comercial da Faculdade de Direito da USP e professor do Institut de Sciences Politiques (Sciences Po), de Paris.

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