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DEMÉTRIO MAGNOLI
Os fetichistas
Lula qualificou o Fórum Social Mundial de "feira de produtos
ideológicos". A cúpula de Porto Alegre reagiu. Pela primeira vez, emitiu
uma declaração política final, intitulada "Manifesto de Porto Alegre". O documento não é assinado pelo próprio
Fórum Social, que conserva para consumo público a ficção de que "não
tem cúpula nem direção", nas palavras de Francisco Whitaker, um de
seus dirigentes. Mas os signatários do
manifesto -Bernard Cassen, Frei
Betto, Emir Sader, Ignácio Ramonet,
José Saramago e Eduardo Galeano,
entre outros- expressam, de fato, as
posições majoritárias da cúpula.
A última das doze exigências do manifesto é a reforma da ONU, acompanhada pela transferência da sua sede
"de Nova York para outro país, preferencialmente do Sul, (...) caso persistam as violações do direito internacional por parte dos EUA". A antepenúltima é o desmantelamento das bases
militares estrangeiras em todos os países, "salvo quando estejam sob mandato expresso da ONU".
Immanuel Kant, no "Paz Perpétua",
de 1795, formulou a idéia de um governo mundial. O "segundo artigo definitivo para a paz perpétua" propunha a formação de uma "liga da paz"
(foedus pacificum), que se distinguiria
de um tratado de paz (pactum pacis)
por sua natureza permanente e pelo
desígnio de extinguir definitivamente
a guerra. No quadro dessa "federação
de nações soberanas", todos os conflitos entre Estados seriam resolvidos
pela negociação e arbitragem legal.
A Liga das Nações, criada em 1919,
inspirou-se no idealismo kantiano.
Contudo seus patrocinadores não
eram filósofos, mas estadistas, e a idéia
do governo mundial foi limada sob o
aço do realismo. Assim, no lugar da federação de nações, surgiu um diretório de grandes potências, representado pelo Conselho da Liga. A ONU é
fruto desse mesmo modelo. Durante a
Segunda Guerra Mundial, Franklin
Roosevelt imaginou o futuro Conselho de Segurança como um diretório
dos "Quatro Policiais". Na ONU, como na sua antecessora, o que vale é o
poder, não a arbitragem legal.
O "Manifesto de Porto Alegre" é um
exercício fetichista que, ignorando a
história, projeta na ONU a imagem
virtuosa do governo mundial kantiano. Seus signatários, intelectuais de esquerda que um dia confiaram aos povos a missão de mudar o mundo, voltam-se agora para a ONU em busca da
redenção da humanidade. Engraçado
é que, ao mesmo tempo, critiquem as
eleições no Iraque ocupado e a operação militar em curso no Haiti, que
contam com a aprovação santificadora da ONU. E que, repercutindo inconscientemente um desejo dos neoconservadores americanos, sugiram
uma ONU sem os EUA, o que equivale
à virtual dissolução da ONU.
A "feira de produtos ideológicos" esgotou sua capacidade de gerar imposturas e, para continuar servindo aos
propósitos de seus promotores, deve
encontrar um lugar respeitável na política mundial. Lula engajou-se na
construção de uma ponte entre Porto
Alegre e Davos. O Fórum Social está
destinado a exercer a função de caixa
de ressonância do "combate mundial
contra a fome", uma bandeira comum
a Lula, à ONU e a Davos. A mudança
já começou: em 2007 o Fórum Social
acontece na África. Um outro Fórum é
possível.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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