São Paulo, quinta-feira, 03 de fevereiro de 2005

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DEMÉTRIO MAGNOLI

Os fetichistas

Lula qualificou o Fórum Social Mundial de "feira de produtos ideológicos". A cúpula de Porto Alegre reagiu. Pela primeira vez, emitiu uma declaração política final, intitulada "Manifesto de Porto Alegre". O documento não é assinado pelo próprio Fórum Social, que conserva para consumo público a ficção de que "não tem cúpula nem direção", nas palavras de Francisco Whitaker, um de seus dirigentes. Mas os signatários do manifesto -Bernard Cassen, Frei Betto, Emir Sader, Ignácio Ramonet, José Saramago e Eduardo Galeano, entre outros- expressam, de fato, as posições majoritárias da cúpula.
A última das doze exigências do manifesto é a reforma da ONU, acompanhada pela transferência da sua sede "de Nova York para outro país, preferencialmente do Sul, (...) caso persistam as violações do direito internacional por parte dos EUA". A antepenúltima é o desmantelamento das bases militares estrangeiras em todos os países, "salvo quando estejam sob mandato expresso da ONU".
Immanuel Kant, no "Paz Perpétua", de 1795, formulou a idéia de um governo mundial. O "segundo artigo definitivo para a paz perpétua" propunha a formação de uma "liga da paz" (foedus pacificum), que se distinguiria de um tratado de paz (pactum pacis) por sua natureza permanente e pelo desígnio de extinguir definitivamente a guerra. No quadro dessa "federação de nações soberanas", todos os conflitos entre Estados seriam resolvidos pela negociação e arbitragem legal.
A Liga das Nações, criada em 1919, inspirou-se no idealismo kantiano. Contudo seus patrocinadores não eram filósofos, mas estadistas, e a idéia do governo mundial foi limada sob o aço do realismo. Assim, no lugar da federação de nações, surgiu um diretório de grandes potências, representado pelo Conselho da Liga. A ONU é fruto desse mesmo modelo. Durante a Segunda Guerra Mundial, Franklin Roosevelt imaginou o futuro Conselho de Segurança como um diretório dos "Quatro Policiais". Na ONU, como na sua antecessora, o que vale é o poder, não a arbitragem legal.
O "Manifesto de Porto Alegre" é um exercício fetichista que, ignorando a história, projeta na ONU a imagem virtuosa do governo mundial kantiano. Seus signatários, intelectuais de esquerda que um dia confiaram aos povos a missão de mudar o mundo, voltam-se agora para a ONU em busca da redenção da humanidade. Engraçado é que, ao mesmo tempo, critiquem as eleições no Iraque ocupado e a operação militar em curso no Haiti, que contam com a aprovação santificadora da ONU. E que, repercutindo inconscientemente um desejo dos neoconservadores americanos, sugiram uma ONU sem os EUA, o que equivale à virtual dissolução da ONU.
A "feira de produtos ideológicos" esgotou sua capacidade de gerar imposturas e, para continuar servindo aos propósitos de seus promotores, deve encontrar um lugar respeitável na política mundial. Lula engajou-se na construção de uma ponte entre Porto Alegre e Davos. O Fórum Social está destinado a exercer a função de caixa de ressonância do "combate mundial contra a fome", uma bandeira comum a Lula, à ONU e a Davos. A mudança já começou: em 2007 o Fórum Social acontece na África. Um outro Fórum é possível.


Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras nesta coluna.

@ - magnoli@ajato.com.br


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