São Paulo, segunda-feira, 03 de março de 2008

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ALBA ZALUAR

Religião e poder

QUALQUER RELAÇÃO humana tem uma dimensão de poder, até mesmo a mais amorosa e incondicional de todas que é a relação entre pais e filhos. Por mais que afirmem o contrário os novos radicais que escrevem inutilmente sobre o fim do poder.
No entanto, há esferas cada vez mais amplas do alcance de uma decisão, uma ordem, uma idéia, um afeto. E aí começam os maiores problemas da afirmação dos princípios e práticas democráticas.
Quanto mais amplo o alcance, mais complicada a constituição da disparidade de poder nas posições de cada pessoa ou grupo humano.
Democracia de massas sempre deixa muitos de fora, muitos insatisfeitos com as decisões tomadas. Por isso, todo cuidado é pouco na decisão sobre o mais justo para o maior número possível de pessoas.
Assim é a discussão sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias. Sem entrar no mérito da questão, pois me falta a competência da biologia e da bioética, o que interessa são os argumentos empregados pelos que discutem.
O debate aborda um amplo espectro de idéias a respeito da vida, mas ultimamente se resume na decisão onde e quando começa a vida. Decidir quando ela termina foi bem mais fácil e, graças a isso, muitas vidas foram salvas com o transplante de órgãos e células vivas de pessoas com morte cerebral.
Na história das religiões, a interferência de dogmas religiosos no avanço da ciência laica sempre foi presente, para o bem e para o mal. Acusações de heresia e demonismo, exclusões brutais da igreja, condenações à morte barraram o livre pensar de cientistas pioneiros nas infindáveis descobertas sobre o universo astronômico e o universo molecular.
Hoje, a Justiça canônica, depois da separação entre Estado e igreja, não pode interferir e resta o poder advindo da autoridade religiosa sobre a definição do que é a vida. Mas a divergência entre as religiões, na palavra de seus líderes, demonstra que não será o dogma que esclarecerá a questão. No judaísmo, a verdade religiosa não contesta a verdade científica, e a vida começa com o nascimento; no catolicismo dogmático, antes da implantação uterina, está em milhares de células em mínimas provetas.
A pesquisa com tais células, que seriam jogadas no lixo, quando sem uso, pode salvar milhares de vidas.
No atual quadro de violência urbana, com transeuntes, policiais, moradores de favela, assaltados atingidos por balas e sofrendo as seqüelas da invalidez, cria-se um paradoxo. Em nome de uma vida que ainda não se instalou e vai desaparecer no lixo, as vidas de seres humanos já constituídos perde-se no dogmatismo religioso.


ALBA ZALUAR escreve às segundas-feiras nesta coluna.


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