São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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JOÃO PAULO 2º

Karol Wojtyla sobreviveu em pouco mais de quatro anos o final do século 20, que ele, como poucos, ajudou a moldar. Sua ascensão ao trono de Pedro, em outubro de 1978, foi o início do terceiro pontificado mais longo da história, durante o qual visitou 129 países, redigiu 14 encíclicas, canonizou 476 santos e beatificou 1.318 católicos.
Primeiro eslavo a assumir a Santa Sé, João Paulo 2º trazia em sua biografia a tenacidade que marcou a história do catolicismo em sua Polônia natal. Naquela nação sem Estado, submetida a uma sucessão de breves e longas anexações, o catolicismo constituiu-se em vigoroso instrumento de afirmação da identidade nacional. A religião desempenhou ali um papel relevante durante a ocupação nazista e ao longo do período em que o país esteve sob o jugo do império soviético. Católicos encontravam na fé uma forma silenciosa e ativa de resistência à opressão. Wojtyla, bispo de Cracóvia e um dos homens mais cultos na hierarquia eclesiástica polonesa, tornar-se-ia um papa firme e atuante.
Não se dedicou, porém, ao combate daqueles que procuravam aproximar o sacerdócio da política laica. Para o papa, as questões sociais precisavam ser enfrentadas dentro de uma perspectiva estritamente católica. A visão de mundo de que o grupo de João Paulo 2º comungava no final da década de 1970 identificava nas desavenças ideológicas um fator de desagregação e enfraquecimento da igreja. Tratava-se de reencontrar o caminho da unidade em torno dos preceitos essenciais da religião e de reconquistar o terreno que se perdia para outras confissões ou para a descrença de uma sociedade marcada pelo materialismo e o consumismo.
Com João Paulo 2º, a autoridade centralizadora do papa fortaleceu-se de maneira acentuada, e a evangelização renovou-se como militância no sentido de um retorno a valores dos quais a igreja não havia propriamente se afastado, mas que, desde o Concílio Vaticano 2º, diluíam-se na pregação de cunho social.
O papa anteviu com impressionante discernimento a desagregação do mundo socialista e preocupou-se com a crise moral que, a seu juízo, ameaçava as sociedades ocidentais em tempos de escassa espiritualidade e de excessos hedonistas.
Com extrema habilidade, entregou-se à tarefa de modificar o perfil predominante do escalão mais elevado de sua igreja, deixando de promover bispos comprometidos com teses e movimentos de esquerda, enquanto, paralelamente, cuidava da ascensão dos que acreditavam que era preciso revalorizar as linhas fundamentais da fé cristã.
Também os novos santos de seu pontificado assumiram a face dos valores que pretendia revigorar. Uma italiana que morreu no parto por se recusar a abortar foi privilegiada com relação a um religioso centro-americano venerado por movimentos de esquerda, que tombou, no altar, num atentado de extrema direita.
Suas teses conservadoras não deixaram, entretanto, de despertar críticas entre católicos mais liberais. A mais polêmica delas talvez tenha sido a de condenar, com reiterada rigidez, a difusão do uso de preservativos num mundo surpreendido pela epidemia de Aids.
O sumo pontífice manteve-se incondicionalmente ao lado da defesa dos direitos humanos, mas não deixou de visitar países submetidos a tiranias -o Chile do general Augusto Pinochet, o Iraque de Saddam Hussein- e não subordinou a diplomacia do Vaticano ao que pareceria a alguns a alternativa politicamente correta. Opôs-se a embargos econômicos que atingiam populações desamparadas, como os decretados contra Cuba e Iraque, e não deixou de usar palavras duras para criticar certos aspectos das sociedades capitalistas.
Seu pontificado oscilou entre uma concepção atemporal de valores que o catolicismo acredita eternos -a fé, a vida, a família tradicional- e uma concepção da política temporal que desprezava tanto a opressão coletivista como os exageros do individualismo. João Paulo 2º defendeu essas teses com coerência e determinação que não poderiam ser negadas nem mesmo por seus adversários de dentro ou de fora da igreja.
Arrojado em seus esforços de comunicar-se com os fiéis, compreendeu o papel dos meios de informação contemporâneos e fez de suas peregrinações internacionais e aparições públicas ritos globalizados de divulgação da fé católica. Nesse sentido, pode-se considerar João Paulo 2º um papa "midiático" -característica que preservou mesmo nos momentos em que se viu enfraquecido pela doença. Vítima de um grave atentado que contribuiu para debilitar sua saúde, nem por isso abandonou o contato com os fiéis -apenas tomou a precaução de blindar o automóvel em que se deslocava.
Para os católicos humildes, alheios às disputas internas do clero e às suas implicações doutrinárias, o papa ficará na história como um homem de gestos afáveis e simples. Era o sacerdote que se curvava e beijava o solo ao desembarcar em suas visitas apostólicas, como fez no Brasil. Era também o homem perseverante que, mesmo com as dificuldades de um ancião castigado por moléstias, jamais abdicou de cumprir aquilo que acreditava ser a sua missão.
A igreja de Karol Wojtyla não viverá na memória como a igreja ambígua diante dos totalitarismos, uma característica que ainda hoje compromete a imagem do pontificado de Pio 12, o papa que não protestou contra a deportação dos judeus pelo 3º Reich ou que conviveu sem conflitos agudos com o fascismo. Ela também não será a igreja do "aggiornamento" promovido por João 23, que submeteu à apreciação dos cardeais um conjunto de tradições permitindo-lhes afastar-se de algumas delas, como o emprego do latim como idioma litúrgico.
A de João Paulo 2º terá sido a igreja que não acreditou no declínio da religiosidade no mundo da ciência e do ceticismo. Terá sido também a igreja que buscou o diálogo inter-religioso, teve a coragem de pedir perdão por erros pretéritos e procurou apaziguar ressentimentos históricos.
Abre-se agora para os católicos um período de expectativa em torno da indicação do próximo papa. Três objetivos, segundo observadores, devem pesar na escolha: uma maior descentralização do poder papal, o aprofundamento do diálogo inter-religioso e o reforço da atuação social da igreja, sem que isso signifique, no entanto, reincidir nos excessos combatidos por João Paulo 2º.


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