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JOÃO PAULO 2º
Karol Wojtyla sobreviveu em
pouco mais de quatro anos o
final do século 20, que ele, como
poucos, ajudou a moldar. Sua ascensão ao trono de Pedro, em outubro
de 1978, foi o início do terceiro pontificado mais longo da história, durante o qual visitou 129 países, redigiu 14
encíclicas, canonizou 476 santos e
beatificou 1.318 católicos.
Primeiro eslavo a assumir a Santa
Sé, João Paulo 2º trazia em sua biografia a tenacidade que marcou a história do catolicismo em sua Polônia
natal. Naquela nação sem Estado,
submetida a uma sucessão de breves
e longas anexações, o catolicismo
constituiu-se em vigoroso instrumento de afirmação da identidade
nacional. A religião desempenhou
ali um papel relevante durante a ocupação nazista e ao longo do período
em que o país esteve sob o jugo do
império soviético. Católicos encontravam na fé uma forma silenciosa e
ativa de resistência à opressão.
Wojtyla, bispo de Cracóvia e um dos
homens mais cultos na hierarquia
eclesiástica polonesa, tornar-se-ia
um papa firme e atuante.
Não se dedicou, porém, ao combate daqueles que procuravam aproximar o sacerdócio da política laica.
Para o papa, as questões sociais precisavam ser enfrentadas dentro de
uma perspectiva estritamente católica. A visão de mundo de que o grupo
de João Paulo 2º comungava no final
da década de 1970 identificava nas
desavenças ideológicas um fator de
desagregação e enfraquecimento da
igreja. Tratava-se de reencontrar o
caminho da unidade em torno dos
preceitos essenciais da religião e de
reconquistar o terreno que se perdia
para outras confissões ou para a descrença de uma sociedade marcada
pelo materialismo e o consumismo.
Com João Paulo 2º, a autoridade
centralizadora do papa fortaleceu-se
de maneira acentuada, e a evangelização renovou-se como militância
no sentido de um retorno a valores
dos quais a igreja não havia propriamente se afastado, mas que, desde o
Concílio Vaticano 2º, diluíam-se na
pregação de cunho social.
O papa anteviu com impressionante discernimento a desagregação do
mundo socialista e preocupou-se
com a crise moral que, a seu juízo,
ameaçava as sociedades ocidentais
em tempos de escassa espiritualidade e de excessos hedonistas.
Com extrema habilidade, entregou-se à tarefa de modificar o perfil
predominante do escalão mais elevado de sua igreja, deixando de promover bispos comprometidos com teses e movimentos de esquerda, enquanto, paralelamente, cuidava da
ascensão dos que acreditavam que
era preciso revalorizar as linhas fundamentais da fé cristã.
Também os novos santos de seu
pontificado assumiram a face dos valores que pretendia revigorar. Uma
italiana que morreu no parto por se
recusar a abortar foi privilegiada com
relação a um religioso centro-americano venerado por movimentos de
esquerda, que tombou, no altar,
num atentado de extrema direita.
Suas teses conservadoras não deixaram, entretanto, de despertar críticas entre católicos mais liberais. A
mais polêmica delas talvez tenha sido a de condenar, com reiterada rigidez, a difusão do uso de preservativos num mundo surpreendido pela
epidemia de Aids.
O sumo pontífice manteve-se incondicionalmente ao lado da defesa
dos direitos humanos, mas não deixou de visitar países submetidos a tiranias -o Chile do general Augusto
Pinochet, o Iraque de Saddam Hussein- e não subordinou a diplomacia do Vaticano ao que pareceria a alguns a alternativa politicamente correta. Opôs-se a embargos econômicos que atingiam populações desamparadas, como os decretados contra
Cuba e Iraque, e não deixou de usar
palavras duras para criticar certos aspectos das sociedades capitalistas.
Seu pontificado oscilou entre uma
concepção atemporal de valores que
o catolicismo acredita eternos -a fé,
a vida, a família tradicional- e uma
concepção da política temporal que
desprezava tanto a opressão coletivista como os exageros do individualismo. João Paulo 2º defendeu essas
teses com coerência e determinação
que não poderiam ser negadas nem
mesmo por seus adversários de dentro ou de fora da igreja.
Arrojado em seus esforços de comunicar-se com os fiéis, compreendeu o papel dos meios de informação contemporâneos e fez de suas
peregrinações internacionais e aparições públicas ritos globalizados de
divulgação da fé católica. Nesse sentido, pode-se considerar João Paulo
2º um papa "midiático" -característica que preservou mesmo nos momentos em que se viu enfraquecido
pela doença. Vítima de um grave
atentado que contribuiu para debilitar sua saúde, nem por isso abandonou o contato com os fiéis -apenas
tomou a precaução de blindar o automóvel em que se deslocava.
Para os católicos humildes, alheios
às disputas internas do clero e às
suas implicações doutrinárias, o papa ficará na história como um homem de gestos afáveis e simples. Era
o sacerdote que se curvava e beijava o
solo ao desembarcar em suas visitas
apostólicas, como fez no Brasil. Era
também o homem perseverante que,
mesmo com as dificuldades de um
ancião castigado por moléstias, jamais abdicou de cumprir aquilo que
acreditava ser a sua missão.
A igreja de Karol Wojtyla não viverá
na memória como a igreja ambígua
diante dos totalitarismos, uma característica que ainda hoje compromete
a imagem do pontificado de Pio 12, o
papa que não protestou contra a deportação dos judeus pelo 3º Reich ou
que conviveu sem conflitos agudos
com o fascismo. Ela também não será a igreja do "aggiornamento" promovido por João 23, que submeteu à
apreciação dos cardeais um conjunto
de tradições permitindo-lhes afastar-se de algumas delas, como o emprego do latim como idioma litúrgico.
A de João Paulo 2º terá sido a igreja
que não acreditou no declínio da religiosidade no mundo da ciência e do
ceticismo. Terá sido também a igreja
que buscou o diálogo inter-religioso,
teve a coragem de pedir perdão por
erros pretéritos e procurou apaziguar ressentimentos históricos.
Abre-se agora para os católicos um
período de expectativa em torno da
indicação do próximo papa. Três objetivos, segundo observadores, devem pesar na escolha: uma maior
descentralização do poder papal, o
aprofundamento do diálogo inter-religioso e o reforço da atuação social da igreja, sem que isso signifique, no entanto, reincidir nos excessos combatidos por João Paulo 2º.
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