São Paulo, domingo, 03 de abril de 2005

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20 anos de democracia

LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA

O Brasil completou 20 anos de democracia. De uma democracia que foi o resultado de uma grande luta de toda a sociedade brasileira. Surgem, agora, algumas perguntas: além de mais liberdade, trouxe-nos, a democracia, mais justiça? Foi retomado o desenvolvimento que se interrompera em 1980? Consolidou-se a própria democracia?
As respostas às duas primeiras questões são negativas. As desigualdades não se acentuaram -em razão, provavelmente, de um aumento substancial do gasto social-, mas o processo de concentração de renda não foi revertido. Quanto ao crescimento, sabemos que não aconteceu. Os assalariados, especialmente os pobres, não melhoraram seus rendimentos reais, e a renda por habitante, que antes crescia a quase 4% ao ano, nestes últimos 25 anos cresceu menos de 1% ao ano.
A democracia, entretanto, consolidou-se. Sobrevieram crises graves, como a alta inflação, o impeachment de Collor, o escândalo dos anões do Orçamento, crises financeiras -mas a democracia se fortaleceu. Em nenhum momento se pensou que a volta a um sistema autoritário poderia ser uma solução. Nesse processo, porém, verificou-se na democracia brasileira uma paradoxal tendência à diminuição do espaço de escolhas -uma diminuição semelhante àquela que ocorre nas democracias maduras. Nestas, a alternância de poder não é traumática porque existem na sociedade consensos suficientes para que os partidos, que convergem para o centro nas eleições, afinal exibam plataformas políticas muito semelhantes. A diferença entre a esquerda e a direita continua real, mas é pequena.
Ora, o mesmo fenômeno parece estar ocorrendo no Brasil. Embora o povo tenha votado em Lula porque queria mudança, esta afinal não ocorreu. Embora o novo governo seja apenas uma tentativa de cópia do anterior, nem por isso o presidente se desmoralizou e perdeu o apoio dos eleitores. Parece que estes, embora querendo a mudança, reconhecem a dificuldade, e por isso admitem que um partido de oposição vença as eleições mas nada mude.


No Brasil não existe o relativo consenso que caracteriza as sociedades mais desenvolvidas, especialmente as européias
O paradoxo da situação está no fato de que no Brasil não existe o relativo consenso que caracteriza as sociedades mais desenvolvidas, especialmente as européias. Nelas, os consensos são possíveis porque o nível de igualdade econômica e social entre as pessoas é grande e porque esses países vivem situações de normalidade econômica e política, experimentando um aumento constante de seus padrões de vida. Nesse tipo de sociedade não há necessidade de decisões fundamentais, e os governos não fazem tanta diferença. Cada nação já conta com um Estado forte, dotado de instituições legitimadas pela sociedade.
Em contraste, no Brasil continuamos a viver tempos anormais, de insegurança, de altas taxas de juros e de quase-estagnação econômica. E não existem consensos razoáveis sobre a natureza de nossos problemas nem sobre como os resolver. Inclusive porque perdemos a capacidade de pensar com a cabeça própria, e estamos sempre esperando que a orientação venha de fora.
Em um quadro como esse, o país precisa, dramaticamente, de bom governo. De governo com visão dos grandes problemas nacionais e com coragem para os enfrentar. Um governo que não partiria do zero, porque o Brasil já conta com um empresariado competente, com uma classe média diversificada, com trabalhadores crescentemente qualificados e já dispõe de um Estado com pessoal e instituições razoavelmente efetivas. Mas há um mar de ações a serem tomadas para que o país possa voltar a pensar por conta própria, ter uma estratégia nacional de desenvolvimento e voltar a crescer. E não há garantia de que possamos ter o bom governo necessário para isso.
A própria democracia, entretanto, nos oferece a saída. É a de chegarmos, nós mesmos, a consensos sobre a natureza de nossos problemas através do debate público. Uma das grandes vantagens da democracia reside exatamente nessa sua capacidade de produzir consensos. Não se trata de uma tarefa fácil, mas é viável, porque a democracia realmente existe no Brasil. Já não é mais uma simples democracia de elites, na qual o povo entra apenas como figurante, mas é uma democracia de opinião pública, na qual os políticos não têm alternativa senão prestar atenção no que essa opinião diz. E já há nela elementos participativos e republicanos razoáveis, que mostram que a cidadania vai deixando de ser mera retórica.
A democracia brasileira nos oferece, portanto, a oportunidade do consenso sobre como retomar o desenvolvimento, como absorver a mão-de-obra excedente e como reduzir os diferenciais de renda. Esses consensos hoje são poucos e débeis. No momento em que, nos quadros da democracia, materializarem-se e ganharem substância, os governos passarão a agir de acordo com eles. E assim os verdadeiros problemas do país passarão a ser enfrentados.
Seremos capazes de aproveitar essa oportunidade? Sou otimista a respeito, mas a resposta real a esta questão dependerá do espírito republicano de cada brasileiro.

Luiz Carlos Bresser-Pereira, 70, professor de economia da FGV-SP, é colunista do caderno Dinheiro. Foi ministro da Ciência e Tecnologia e da Administração Federal e Reforma do Estado (governo Fernando Henrique), além de ministro da Fazenda (governo Sarney).

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