São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2004

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JOSÉ SERRA

Ainda o islandês

Duas semanas atrás, fui jantar com o professor EK num desses restaurantes de São Paulo cuja comida justifica a boa fama culinária da cidade. No carro, o trânsito da cidade dominou a conversa. Ele disse nunca ter visto coisa igual no mundo.
Expliquei que o ano eleitoral piorava a situação, pois a prefeitura estava usando os tapumes para mostrar serviço e aumentar a chance de reeleição de sua titular. Mas o islandês não conseguiu entender: "Desculpe, mas isso parece iniciativa da oposição. Não foram os vereadores adversários que obrigaram a prefeitura a fazer essas obras, sem ter dinheiro suficiente, tudo de uma vez, numa cidade já tão sofrida e na véspera de uma eleição?". Alem disso, acrescentou, "numa cidade desse tamanho e que tem pouco metrô, novos viadutos, passagens de nível e coisas assim são a menor distância entre dois engarrafamentos. Não seria mais lógico consumir o dinheiro e a paciência das pessoas fazendo mais metrô?".
Nesse momento, chegamos ao restaurante, o que me livrou da obrigação de explicar-lhe, em inglês, a complexidade do assunto. Lá cruzamos, por acaso, com os amigos e deputados federais Jutahy Magalhães Jr. e Sebastião Madeira. No meio da nova conversa, aproximaram-se da mesa dois homens falando castelhano. O mais desenvolto se identificou como colombiano e diretor de um banco de investimentos multinacional sediado na Europa, dizendo o quanto teria gostado de que eu tivesse sido eleito. Agradeci: "Es una lástima que los colombianos no pueden votar acá. A propósito, como ve su banco la situación económica de Brasil?". Ele arriscou, em portunhol: "O problema é que no hay crescimento. Fazem falta buenos negócios".
Expliquei para o EK, que entende pouco português e espanhol, o que o banqueiro havia dito, notando que, ao contrário do que pensam o governo federal e o PT, ele confirmara a teoria de que o capital estrangeiro é pró-cíclico: aparece quando tudo anda bem e reflui quando tudo vai mal.
EK ficou surpreso: "Alguém pode pensar o contrário? Capital estrangeiro busca prosperidade. E o que vocês fazem aqui -juros e impostos altíssimos, falta de investimentos públicos úteis (não os dos tapumes)- afasta os investimentos diretos estrangeiros. Trata-se de uma atitude nacionalista xenófoba do PT. Vocês, da oposição, não perceberam isso". E tem mais: "O governo do Lula tem feito questão de reduzir os financiamentos do Banco Mundial e do BID, apesar de serem mais baratos e de prazo mais longo que os empréstimos privados. Eis uma forma original de ser contra o Consenso de Washington, cidade onde estão as sedes daqueles bancos".
O Jutahy e o Madeira preparavam-se para rebater essas idéias esdrúxulas em nosso universo mental quando a chegada do peixe com purê de mandioquinha me permitiu desviar a conversa para temas mais amenos.
Mas, no caminho para o hotel, EK arrematou: "Sabe, Serra, o que o colombiano ignora é que seu banco anda arredio com a economia brasileira porque o Banco Central brasileiro não é independente". Diante da minha surpresa: "Pelo menos é isso que um alto funcionário do governo [pediu-me "off" sobre o nome] acha que eles acham". Convenci, então, o conterrâneo da Bjork de que ele jamais entenderia minhas explicações a respeito na porta do hotel e naquela hora da noite.


José Serra escreve às segundas nesta coluna.


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