São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2004

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CARLOS HEITOR CONY

Dorival Caymmi

RIO DE JANEIRO - Em criança, eu tinha medo de Dorival Caymmi, que agora está fazendo 90 anos em merecida glória. Tudo nele era diferente, a voz grossa, vinda do fundo do mar, com cheiro de ventos e ondas, temas estranhos ao menino carioca que nunca ouvira falar em acarajé e jangada, aquela terrível jangada que partiu com Chico, Ferreira e Bento, jangada que voltou só.
Não achava doce morrer no mar e até hoje não acho doce morrer em lugar algum. Nem me importava o que é que a baiana tinha ou não tinha, nem sabia o que era um pano-da-costa, muito menos um balangandã. E só fui ao Bonfim muito tarde, para ver como era.
Até que um dia, sozinho, mexendo no primeiro rádio lá de casa, um Pilot que tinha a forma de uma janela gótica, ouvi aquela voz tremenda, vinda lá do fundo do mar. Descobri um mundo diferente da bossa de Noel Rosa, da mão esquerda do Ary Barroso, que dava um gingado especial ao samba, das marchinhas de Lamartine Babo e Braguinha, dos sambinhas de Geraldo Pereira.
A voz grave de Dorival mexia comigo, como aquele acorde inicial da tocata em ré maior de Bach, que até hoje me faz tremer lá dentro, como se ouvisse o primeiro (ou último) estertor da Terra.
"Te conheci no Recife dos rios cortados de pontes, dos bairros, das fontes coloniais..." O Recife de Manuel Bandeira e João Cabral deixou de ser referência para o garoto carioca. Um baiano de lábios gordos, requebrando os olhos, era acima de tudo um poeta, um poeta que pegou um poema de Jorge de Lima e fez uma obra-prima: "Ela chegou certo dia, no engenho do meu avô, era uma nega bonita chamada Nega Fulô".
Em Dorival Caymmi, a melodia nunca vem de fora dele mesmo. É uma secreção, um pulsar lá do fundo, o respirar tranqüilo quando se sonha bonito.


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