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CARLOS HEITOR CONY
Dorival Caymmi
RIO DE JANEIRO - Em criança, eu tinha medo de Dorival Caymmi, que
agora está fazendo 90 anos em merecida glória. Tudo nele era diferente, a
voz grossa, vinda do fundo do mar,
com cheiro de ventos e ondas, temas
estranhos ao menino carioca que
nunca ouvira falar em acarajé e jangada, aquela terrível jangada que
partiu com Chico, Ferreira e Bento,
jangada que voltou só.
Não achava doce morrer no mar e
até hoje não acho doce morrer em lugar algum. Nem me importava o que
é que a baiana tinha ou não tinha,
nem sabia o que era um pano-da-costa, muito menos um balangandã.
E só fui ao Bonfim muito tarde, para
ver como era.
Até que um dia, sozinho, mexendo
no primeiro rádio lá de casa, um Pilot que tinha a forma de uma janela
gótica, ouvi aquela voz tremenda,
vinda lá do fundo do mar. Descobri
um mundo diferente da bossa de
Noel Rosa, da mão esquerda do Ary
Barroso, que dava um gingado especial ao samba, das marchinhas de
Lamartine Babo e Braguinha, dos
sambinhas de Geraldo Pereira.
A voz grave de Dorival mexia comigo, como aquele acorde inicial da tocata em ré maior de Bach, que até hoje me faz tremer lá dentro, como se
ouvisse o primeiro (ou último) estertor da Terra.
"Te conheci no Recife dos rios cortados de pontes, dos bairros, das fontes coloniais..." O Recife de Manuel
Bandeira e João Cabral deixou de ser
referência para o garoto carioca. Um
baiano de lábios gordos, requebrando os olhos, era acima de tudo um
poeta, um poeta que pegou um poema de Jorge de Lima e fez uma obra-prima: "Ela chegou certo dia, no engenho do meu avô, era uma nega bonita chamada Nega Fulô".
Em Dorival Caymmi, a melodia
nunca vem de fora dele mesmo. É
uma secreção, um pulsar lá do fundo, o respirar tranqüilo quando se
sonha bonito.
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