São Paulo, quarta-feira, 03 de maio de 2006

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As lacunas capitais do PT


A corrosão política do PT encontrou condições ideais com a confluência entre pragmatismo sindical e lulismo

RICARDO ANTUNES

Os recentes episódios na devassa da conta do caseiro Francenildo, a demissão de Palocci e a dança desbalanceada de Angela Guadagnin são expressões da turbulência que atingiu o PT e o seu governo. Partido que padeceu, em sua história recente, de algumas lacunas capitais que aqui podemos tão-somente indicar.
A primeira delas é a flacidez ideológica de um partido que se pretendeu de esquerda. Nascido sob a direção do chamado "novo sindicalismo" com sede no ABC paulista, avesso à reflexão, o desdém do PT à teoria foi sempre seu traço distintivo. De Marx a Florestan Fernandes, passando por Caio Prado Jr., a assimilação teórica feita pelo seu núcleo dominante, com as exceções de praxe, foi sempre trilhada pela recusa da teoria emancipatória, por mais que a esquerda petista gritasse. O (o)caso de Lula é exemplar.
O novato PT encontrava algumas similitudes com o velho trabalhismo inglês. Quando Tony Blair deslanchou o processo de conversão do Labour Party em "New Labour", em 1994, eliminou qualquer vestígio que mantivesse a designação "socialista", até mesmo como referência formal. A substituição da cláusula 4 do estatuto partidário do "New Labour", que defendia a "propriedade comum dos meios de produção", pela defesa do "empreendimento do mercado e rigor da competição", é exemplar e fala por si só. Aqui, ao longo da década de 90, algo similar também ocorria no PT. De modo lento, mas irreversível.
A segunda lacuna capital do PT (e de seu governo) foi sua corrosão política. Se, em sua origem, o partido encontrava viva ancoragem nas lutas sociais e sindicais, pouco a pouco foi abandonando seu traço genético e abraçando crescente e avidamente a pauta institucional, dando centralidade cada vez maior aos embates eleitorais. E, com isso, foi se consolidando algo a que o PT era avesso, isto é, uma política de alianças cada vez mais desvertebrada e policlassista, que chegou a flertar com núcleos mais duros da direita brasileira, como foi o caso de Maluf em São Paulo.
Não é de estranhar, então, que a simbiose vivenciada pelo PT viesse a se converter em um caso de fagocitose. E é isso que ajuda a entender sua adesão a uma política em desacordo com sua programática anterior. Da privatização da Previdência à liberação dos transgênicos, da política de juros que felicita os bancos ao superávit primário que infelicita os pobres, que dependem de seu trabalho para viver.
A flacidez ideológica e a corrosão política encontraram, no PT, condições ideais para sua vigência quando, em meados dos anos 90, se deu a confluência e acordo entre o pragmatismo sindical de Lula e o lulismo (vale lembrar que Delúbio vem da CUT) e o aparelhamento da máquina partidária, no qual ninguém é capaz de superar José Dirceu e sua turma. A costura entre o pragmatismo sindical e "apolítico" de Lula e a postura aparelhista de Dirceu consolidou uma nova maioria no PT, que desconstruiu sua origem democrática, pluralista, socialista e de base, substituindo-a por uma gestão que fundia mandonismo com messianismo, irradiando práticas que se desenvolveram em Santo André e Ribeirão Preto e que hoje avassalaram o (des)governo do PT.
O desmoronamento ético, outra lacuna capital, não demorou a aflorar. Depauperado ideologicamente, atolado na política sem vértebra que lhe levou ao inferno (basta lembrar do "aliado" Roberto Jefferson e seu PTB), não foi difícil presenciar seu definhamento ético. Rolava ladeira abaixo o único charme que o PT ainda ostentava: o de ser o paladino da ética, elemento não mais presente na política do grupo dominante que manda no PT.
O partido da ética implementava uma política verdadeiramente patética, cujo lance recente foi ver a "res publica", comandada por um ex-operário, devassar as contas e a intimidade de um homem do povo, o caseiro Francenildo, para impedir o desmoronamento cabal da prática da corrupção política que avassalou o PT e seu governo.
Por isso, não parece demais recordar Guimarães Rosa: "Será [...] que, quando um tem noção de resolver a vender alma sua, que é porque ela já estava dada vendida, sem se saber; e a pessoa sujeita está só é certificando o regular dalgum velho trato que já se vendeu aos poucos, faz tempo?".


Ricardo Antunes é professor titular de sociologia da Unicamp e autor de, entre outros, "O Caracol e sua Concha" (Boitempo).


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