São Paulo, quinta-feira, 03 de maio de 2007

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Que vida, biológica ou moral?

OSCAR VILHENA VIEIRA

Elevar o embrião inviável à condição de ser humano relega à maior irrelevância o sofrimento de milhares de seres humanos reais

POUCO TEMPO antes de deixar o comando do Ministério Público Federal, o então procurador-geral Claudio Fonteles propôs uma ação direta de inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei de Biossegurança que autorizam a pesquisa, para fins terapêuticos, com células de embriões inviáveis para fertilização.
Argumenta o ex-procurador-geral da República que a lei é inconstitucional, pois violaria o direto à vida, bem como o princípio da dignidade humana -ambos entrincheirados em nossa Constituição. O raciocínio é simples. A vida começa com a fecundação. O direito à vida é protegido pela Constituição. Logo, fazer pesquisa com células embrionárias é atentar contra a dignidade da vida humana.
O raciocínio do ex-procurador-geral é tão cartesiano quanto incorreto.
O primeiro equívoco do ex-procurador-geral é não reconhecer que o debate colocado ante o Supremo Tribunal Federal é de natureza prevalentemente moral, e não de natureza "estritamente científica", como propõe em artigo nesta Folha de S.Paulo ("Tendências/Debates", 26/4).
A questão fundamental, portanto, não é quando começa a vida biológica, mas sim que grau de proteção jurídica deve ser conferido à vida em cada etapa de seu desenvolvimento.
Reconhecer que o embrião tem vida não significa que estejamos dispostos a equipará-lo moral e juridicamente a uma pessoa. Seria como comparar uma semente de jacarandá encontrada no chão da floresta com uma árvore centenária que protegemos com nossa legislação ambiental.
A dor de ver uma semente sendo comida por um passarinho não é equiparável àquela de ver uma árvore derrubada por um raio, como nos lembra o filósofo Michael Sandel.
Todos que já perderam uma pessoa querida sabem o que significa a morte de um ser humano, e esta não pode ser comparada com o não-desenvolvimento de um embrião, ainda mais quando falamos de um embrião que se encontra fora do útero e é inviável para fertilização.
Essa distinção no valor atribuído a cada uma das diversas etapas de evolução da vida já é feita pelo nosso direito e, até onde sei, jamais foi questionada pelo ex-procurador-geral da República Claudio Fonteles.
Nosso Código Penal permite, por exemplo, o aborto quando houver risco de vida para a mãe. Ou seja, na ponderação feita pelo legislador, ele deu mais importância à vida da mãe do que à expectativa de vida do feto -e é razoável que assim tenha feito.
Importante destacar, por outro lado, que a pesquisa autorizada pela Lei de Biossegurança se resume apenas àqueles embriões que foram produzidos fora do útero materno para fins de fertilização, mas que não se demonstraram viáveis para esse mesmo fim, seja por um problema de natureza fisiológica, seja porque, depois de três anos congelados, não mais podem ser implantados com segurança em um útero materno.
Ou seja, estamos falando de embriões que não possuem nenhuma expectativa de evoluir para a condição humana. A equiparação mecânica feita pelo ex-procurador-geral é, portanto, destituída de sentido.
Isso não quer dizer que o embrião não tenha valor e que não deva ser protegido. Antes o contrário. Ele tem valor e devemos protegê-lo. Porém, essa proteção deve ser distinta daquela proteção que conferimos às pessoas.
É exatamente isso o que faz a Lei de Biossegurança. Ela proíbe a pesquisa com qualquer embrião que seja viável. Mais do que isso, proíbe qualquer pesquisa que não tenha fins terapêuticos, portanto, humanitários.
O terceiro aspecto preocupante do argumento levado a cabo pelo ex-procurador-geral da República é a sua omissão em relação à dignidade e à própria vida de milhões de pessoas humanas que sofrem doenças graves e letais, como Parkinson, diabetes, doenças coronárias ou lesões de medula, que poderiam ser beneficiadas com o progresso nas pesquisas com células-tronco.
Ao elevar o embrião inviável à condição de ser humano, o sofrimento de milhares de seres humanos reais está sendo relegado à mais absoluta irrelevância. E essa não parece ser uma escolha moralmente adequada por quem luta em favor da vida.


OSCAR VILHENA VIEIRA, 41, advogado, mestre em direito pela Universidade de Colúmbia (EUA) e doutor em ciências políticas pela USP, é professor de direito constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e diretor jurídico da Conectas Direitos Humanos. É autor, entre outras obras, de "Direitos Fundamentais: uma Leitura da Jurisprudência do STF".

Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br

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