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TENDÊNCIAS/DEBATES
Que vida, biológica ou moral?
OSCAR VILHENA VIEIRA
Elevar o embrião inviável à condição de ser humano relega à maior irrelevância
o sofrimento de milhares
de seres humanos reais
POUCO TEMPO antes de deixar o
comando do Ministério Público
Federal, o então procurador-geral Claudio Fonteles propôs uma ação
direta de inconstitucionalidade contra dispositivos da Lei de Biossegurança que autorizam a pesquisa, para
fins terapêuticos, com células de embriões inviáveis para fertilização.
Argumenta o ex-procurador-geral
da República que a lei é inconstitucional, pois violaria o direto à vida, bem
como o princípio da dignidade humana -ambos entrincheirados em nossa Constituição. O raciocínio é simples. A vida começa com a fecundação. O direito à vida é protegido pela
Constituição. Logo, fazer pesquisa
com células embrionárias é atentar
contra a dignidade da vida humana.
O raciocínio do ex-procurador-geral é tão cartesiano quanto incorreto.
O primeiro equívoco do ex-procurador-geral é não reconhecer que o
debate colocado ante o Supremo Tribunal Federal é de natureza prevalentemente moral, e não de natureza
"estritamente científica", como propõe em artigo nesta Folha de S.Paulo ("Tendências/Debates", 26/4).
A questão fundamental, portanto,
não é quando começa a vida biológica, mas sim que grau de proteção jurídica deve ser conferido à vida em cada etapa de seu desenvolvimento.
Reconhecer que o embrião tem vida não significa que estejamos dispostos a equipará-lo moral e juridicamente a uma pessoa. Seria como
comparar uma semente de jacarandá
encontrada no chão da floresta com
uma árvore centenária que protegemos com nossa legislação ambiental.
A dor de ver uma semente sendo
comida por um passarinho não é
equiparável àquela de ver uma árvore
derrubada por um raio, como nos
lembra o filósofo Michael Sandel.
Todos que já perderam uma pessoa
querida sabem o que significa a morte
de um ser humano, e esta não pode
ser comparada com o não-desenvolvimento de um embrião, ainda mais
quando falamos de um embrião que
se encontra fora do útero e é inviável
para fertilização.
Essa distinção no valor atribuído a
cada uma das diversas etapas de evolução da vida já é feita pelo nosso direito e, até onde sei, jamais foi questionada pelo ex-procurador-geral da
República Claudio Fonteles.
Nosso Código Penal permite, por
exemplo, o aborto quando houver risco de vida para a mãe. Ou seja, na
ponderação feita pelo legislador, ele
deu mais importância à vida da mãe
do que à expectativa de vida do feto
-e é razoável que assim tenha feito.
Importante destacar, por outro lado, que a pesquisa autorizada pela Lei
de Biossegurança se resume apenas
àqueles embriões que foram produzidos fora do útero materno para fins
de fertilização, mas que não se demonstraram viáveis para esse mesmo
fim, seja por um problema de natureza fisiológica, seja porque, depois de
três anos congelados, não mais podem ser implantados com segurança
em um útero materno.
Ou seja, estamos falando de embriões que não possuem nenhuma
expectativa de evoluir para a condição humana. A equiparação mecânica
feita pelo ex-procurador-geral é, portanto, destituída de sentido.
Isso não quer dizer que o embrião
não tenha valor e que não deva ser
protegido. Antes o contrário. Ele tem
valor e devemos protegê-lo. Porém,
essa proteção deve ser distinta daquela proteção que conferimos às
pessoas.
É exatamente isso o que faz a Lei de
Biossegurança. Ela proíbe a pesquisa
com qualquer embrião que seja viável. Mais do que isso, proíbe qualquer
pesquisa que não tenha fins terapêuticos, portanto, humanitários.
O terceiro aspecto preocupante do
argumento levado a cabo pelo ex-procurador-geral da República é a sua
omissão em relação à dignidade e à
própria vida de milhões de pessoas
humanas que sofrem doenças graves
e letais, como Parkinson, diabetes,
doenças coronárias ou lesões de medula, que poderiam ser beneficiadas
com o progresso nas pesquisas com
células-tronco.
Ao elevar o embrião inviável à condição de ser humano, o sofrimento de
milhares de seres humanos reais está
sendo relegado à mais absoluta irrelevância. E essa não parece ser uma
escolha moralmente adequada por
quem luta em favor da vida.
OSCAR VILHENA VIEIRA, 41, advogado, mestre em direito pela Universidade de Colúmbia (EUA) e doutor em ciências políticas pela USP, é professor de direito constitucional da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas e diretor jurídico da Conectas Direitos Humanos. É autor, entre outras obras, de "Direitos Fundamentais: uma Leitura
da Jurisprudência do STF".
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo. debates@uol.com.br
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