São Paulo, segunda-feira, 03 de maio de 2010

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Nem qualidade nem mérito

EDUARDO PORTELLA


Desde a redemocratização, indiferente à urgência da reforma política, ampla, geral e irrestrita, a educação não conseguiu avançar


ESTÁ MAIS do que comprovado que o projeto de um Brasil maior jamais se efetivará sem a educação. Sem ela em todos os níveis, porque nela todos são prioritários. Certa vez, tentei revalorizar o pré-escolar e não encontrei o apoio que esperava dos pedagogos de plantão e dos ombros coroados, que me convidaram para abrir e renovar, na forma da lei, a experiência, o saber e a imaginação.
Contra-argumentava que, mesmo não sendo tão sistêmicas, essas instâncias inaugurais e a família decidiam a sorte do sistema. Corrigiriam os números insuportáveis de repetência e de evasão pública e privada. Mas essa é outra história, felizmente perdida no tempo.
O grave é que, desde a redemocratização, indiferente à urgência da reforma política, ampla, geral e irrestrita, a educação não conseguiu avançar. Chegou a tragar alguns nomes qualificados. As salas de aula inadequadas, a falta de bibliotecas atualizadas e os materiais escolares fraudados foram prosperando, em ritmo bem mais veloz do que o país.
A autossuficiência, que é própria da ignorância e da vaidade, não se fez de rogada. O capítulo do salário docente vem sendo verdadeira aberração.
Tornam-se cada vez mais necessários os enlaces da consciência dialógica. Volto a insistir: educação sem qualidade não é educação, é caso de polícia (nunca pensei que um dia na minha vida, tão a contragosto, viesse a recorrer à polícia). Hoje se fala em qualidade, sobretudo aqueles sonegadores, como se a qualidade não fosse um valor diferenciado e socialmente encarnado.
Como se fosse apenas um slogan eleitoral. Precisamos urgentemente repensar o Brasil, com Celso Furtado, Raymundo Faoro, Carlos Guilherme Mota, Samuel Pinheiro Guimarães.
Chega de amadorismo, de palpites desarticulados. A qualidade e o mérito, avaliados com os vícios do sistema, reprodutor de privilégios intermináveis, nunca reformam ou transformam. Apenas reforçam as iniquidades persistentes.
Será que essa gente não se cansa de ser os gigolôs do que seriam políticas públicas? É certo que a aliança de ética e política sempre foi uma aspiração fracassada. Mas já é hora de dar um basta. Esse esforço conjugado de renascimento, para ser realista, terá de transpor o limite partidarista.
Falta, não me canso de repetir, educação à cultura, e cultura à educação. Edgar Morin, que havia denunciado a natureza humana como paradigma perdido, ao predicar pela inclusão de um elenco de sete saberes nos sistemas de educação conhecidos, que vão do liceu à universidade, reclama agora a compreensão crítica em uma trajetória que vai do conhecimento até o antropoético.
A racionalidade aberta, que impulsiona o entendimento da complexidade, estaria ausente dos nossos currículos escolares, e mais amplamente acadêmicos, apontando para o vazio inaceitável. Tudo isso parece igualmente estranho a nossos gestores educacionais e culturais.
Somente a interdisciplinaridade pode abrir o que ficara guardado na caixa-preta da história.
Na Espanha, que dispõe de uma tradição educacional mais forte que a nossa, com um volume de ofertas pedagógicas bastante amplo, o ministro da Educação acaba de apresentar à discussão do governo, dos especialistas e da sociedade um "pacto educativo", destinado a corrigir as inadimplências do sistema.
É um pacto transpartidário, que reúne governo e oposição por uma política de Estado, com 148 ações específicas, mobilizando múltiplos agentes sociais. Como a brasileira, a sociedade espanhola é sensível a esse tipo de mudança, imune à barganha partidária e provavelmente à sujeira dos candidatos de "ficha suja".
A educação, se bem planejada e executada, poderia certamente promover uma limpeza geral, e deixar o processo pedagógico fluir. E o Brasil também.

EDUARDO PORTELLA, 77, escritor e professor emérito da UFRJ, membro da Academia Brasileira de Letras, é presidente do Comitê Caminhos do Pensamento e do Fundo Internacional para a Promoção da Cultura, da Unesco. Foi ministro da Educação, Cultura e Esportes (governo João Figueiredo) diretor-geral-adjunto da Unesco (1988-1993) e presidente da Conferência Geral da Unesco (1997-1999).


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