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São Paulo, terça-feira, 03 de junho de 2003

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Por que a Alca seria nociva ao Brasil

A derir à Alca seria o maior erro de nossa história nacional. Para optar por rejeitá-la, não precisamos regredir ao protecionismo semi-autárquico. Basta abrirmos as cabeças para as preocupações estratégicas que norteiam a nova teoria do comércio internacional e abrirmos os olhos para as experiências de nossos vizinhos.
As vantagens comparativas entre as nações não são naturais ou eternas. Resultam da ação, especialmente quando acertadas entre empresas e governos. Para melhorar de lugar na divisão internacional do trabalho, um país tem de consolidar conjuntos de capacidades e de empreendimentos que se reforcem a ponto de fincar raízes. Raízes que resistam ao oportunismo dos mercados internacionais. Ao mesmo tempo, e sobretudo nos setores em que é mais difícil evitar o surgimento constante de novos concorrentes no mundo, tem de fazer a travessia da eficiência baseada em trabalho barato para a eficiência fundada em trabalho mais produtivo.
O livre comércio tende a ser mais vantajoso ou entre economias com níveis de produtividade semelhantes ou entre países tão desiguais -os mais ricos e os mais pobres- que os benefícios da especialização e da emulação predominem sobre os prejuízos da inibição. Os perigos do livre comércio são maiores quando um dos parceiros tem perspectiva de galgar os degraus que lhe permitam comerciar em condições relativamente equânimes com o outro. Esse é nosso caso em relação aos Estados Unidos.
A discussão brasileira a respeito da Alca se trava como se a presunção a favor do livre comércio absoluto estivesse sendo revertida pelo caráter leonino das propostas dos Estados Unidos. A verdade é que a presunção contra o livre comércio entre duas economias como essas duas só se reverteria por meio de concessões extraordinárias da mais forte à mais fraca -concessões ainda maiores do que aquelas empregadas para construir a União Européia.
A essa objeção econômica acresce outra, de ordem política. Um dos pilares sobre os quais os Estados Unidos querem manter sua predominância no mundo é sua hegemonia no hemisfério ocidental. O Brasil contemporizou, por necessidade, com essa idéia, sem jamais aceitá-la. A Alca ajudaria, porém, a perpetuá-la e a enrijecê-la.
Rejeitar a Alca não é nos isolar. Para aumentar nossos fluxos de comércio, precisamos assegurar a primazia dos interesses do trabalho e da produção no Brasil e continuar a multiplicar os acordos bilaterais -apenas pontuais com os Estados Unidos e a União Européia, mais abrangentes com nossos outros parceiros. E encontrar os aliados com quem lutar, dentro e fora da Organização Mundial do Comércio, para mudar as regras do jogo. O problema não está em nosso isolamento. Está em nossa passividade.
Quem quiser fatos que confirmem essas idéias deve olhar em volta na América Latina. Se livre comércio com os Estados Unidos fosse, para um país como o nosso, o caminho do avanço, Porto Rico seria um paraíso. É uma sociedade desmoralizada -com fome zero e com esperança zero. O México teria encontrado no Nafta a maneira de contrabalançar, por meio do dinamismo econômico, sua dependência avassaladora dos Estados Unidos. Apesar de juros baixos, vegeta na estagnação. E assiste, impotente, à involução tecnológica de suas indústrias montadoras e à fuga do emprego para países de trabalho mais barato.
O Brasil não precisa da Alca. Precisa de projeto.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger



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