São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
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Radiografia do poder


Como o besouro não entende de física, ele voa; minha esperança, pois, é que o Brasil voe para melhores dias


IVES GANDRA DA SILVA MARTINS

Na juventude, li "Vôo Noturno", livro de Saint-Exupéry em que o principal personagem, o piloto Fabian, num pequeno avião, enfrenta uma tempestade sem nenhuma orientação. Para fugir dela, eleva-se acima da tormenta, sabendo que aquele vôo sereno poderia ser um dos seus últimos momentos; ao se esgotar o combustível, ele deveria voltar à tempestade para tentar um pouso impossível, naquela época em que os vôos eram apenas visuais.
Às vezes, penso que o momento por que passa o Brasil assemelha-se à busca desesperada e inútil de Fabian por um vôo e um pouso tranquilos. A certa euforia em que governo e brasileiros foram embebidos nas últimas semanas não tem sustentação convincente. As mesmas causas que deram origem à crise remanescem, sem que o Congresso se esforce para repensar a Federação e fazer as reformas constitucionais necessárias, envolvido que está na "síndrome do holofote" provocada pelas CPIs tópicas, as quais ofertam aos parlamentares maior acesso à mídia.
É verdade que o problema não é só nacional. Os US$ 70 trilhões de ativos financeiros que circulam pelo globo (contra os US$ 32 trilhões do PIB mundial) demonstram a impossibilidade de controle eficaz das migrações especulativas ou geradas pelo pânico que os detentores desse montante podem levar à economia mundial, apesar da orientação que recebem de especialistas. O mundo hoje é mais conduzido pelos que detêm tais recursos do que pelos governos, sempre correndo para apagar o "fogo" que as migrações inesperadas de capitais podem provocar, principalmente nos países emergentes.
O Brasil tem uma dívida interna de R$ 400 bilhões, um débito externo (com o novo empréstimo do FMI) de US$ 200 bilhões e uma dívida atuarial que deve estar beirando R$ 1 trilhão. O somatório de tal passivo chega a quase duas vezes o Produto Interno Bruto, sem grandes horizontes de redução, em face dos déficits públicos decorrentes de uma Federação muito maior que o PIB. As 5.500 entidades federativas despendem os recursos orçamentários muito mais na manutenção de suas estruturas do que na prestação de serviços públicos; quase todas gastam com servidores ativos e inativos mais de 60% de sua receita, numa fantástica prova de que a sociedade é que está a serviço do corporativismo oficial, em vez de os servidores servirem ao povo.
Apesar da dívida e do déficit, o Brasil tem a maior carga tributária dos países emergentes, semelhante à de nações desenvolvidas, como EUA e Japão. É um fato que o eminente secretário da Receita Federal teima em esconder, preferindo -apesar dos recordes de arrecadação que tem obtido num país sob recessão e desemprego- atacar os contribuintes e sugerir um "imposto sobre o prejuízo", que chama de "imposto sobre a renda mínima".
Não percebe Sua Excelência que o país está exaurido -com um PIB negativo projetado- e que a retirada de dinheiro da sociedade (ainda geradora de riqueza para o país) por meio de tributos, a fim de transformar essa riqueza em desperdícios oficiais, é forma de apostar no retrocesso nacional e não em seu desenvolvimento? O Brasil, para voltar a crescer, precisa de menor carga tributária e não de uma proposta de carga confiscatória, incidente sobre o "prejuízo das empresas", únicas reais geradoras de emprego num país esmagado pelo excesso de "Estado".
O Brasil vai mal. Só a sociedade pode salvá-lo, se os governos federativos não atrapalharem; principalmente, se o Congresso ofertar as reformas capazes de reduzir o tamanho da Federação e do Estado e o corporativismo oficial, que oferece, na Previdência, dez vezes mais recursos a seus servidores do que aos trabalhadores dos segmentos não-governamentais. Os detentores do poder devem abrir mão de seus privilégios e procurar servir à nação.
Estou convencido de que Sua Excelência, o presidente da República, num quadro de infidelidade partidária, de excesso de partidos sem ideologia definida e de acúmulo de solicitações, tem feito o que pode, visto que os partidos aliados já deflagraram o processo sucessório, deixando de lhe oferecer a sustentação necessária no Parlamento.
O próprio governador Mário Covas -de longe, a maior reserva moral do país neste momento, ao lado do vice-presidente, Marco Maciel- sofre as consequências do grande número de garantias ofertado pela Constituição ao poder e a seus detentores, enfrentando as mesmas dificuldades para servir a São Paulo, em face das limitações orçamentárias, do endividamento público e da impossibilidade de definir a política monetária e cambial do país.
"Last, but not least", o desconhecimento do que sejam "moeda" e "política monetária" por parte da esmagadora maioria dos parlamentares e mesmo de honrados membros da Receita dificulta ainda mais a governabilidade. Autoridades monetárias do mundo inteiro têm alertado para o fato de que o Brasil continuará sujeito a toda espécie de crises, apesar do potencial do mercado, se não fizer as reformas necessárias na Carta e na estrutura de poder.
O momento continua crítico, lembrando o vôo do piloto de Saint-Exupéry. Esperamos que outro vôo, o do besouro, salve o Brasil: pelas leis da física, esse inseto não poderia voar, em face de seu peso e do tamanho de suas asas. Mas, como o besouro não entende de física, ele voa. Minha esperança, pois, é que o Brasil voe para melhores dias. Como o brasileiro se nega a conhecer a gravidade da crise e a dinâmica das leis econômicas e financeiras, é possível que seu otimismo salve o país.


Ives Gandra da Silva Martins, 64, advogado tributarista, é professor emérito das universidades Mackenzie e Paulista e da Escola de Comando do Estado-Maior do Exército, presidente da Academia Internacional de Direito e Economia e do Conselho de Estudos Jurídicos da Federação do Comércio do Estado de São Paulo.



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