São Paulo, Quinta-feira, 03 de Junho de 1999
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Pelo respeito à Constituição


É preciso apurar quem fez essas gravações e a mando de quem; a competência para isso é justamente do Congresso


ANDRÉ SUPLICY
e EDUARDO SUPLICY


O "caput" do artigo 37 da Constituição estabelece que a administração pública obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade e publicidade. Seu inciso XXI dispõe que, ressalvados os casos especificados na legislação, obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública, que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento. Esse processo só deve permitir as exigências de qualificação técnica e econômica, indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
As conversas publicadas pela Folha contêm indícios da violação desses princípios constitucionais pelo presidente e por sua equipe no processo de privatização das teles. O fato de as fitas terem origem ilegal deve ser objeto de séria investigação, mas não pode servir de argumento para que seu conteúdo seja ignorado. Ninguém pode fazer de conta que o desconhece. Muito menos o Congresso, que tem o dever de investigar os atos da administração pública.
Ao tentar explicar o conteúdo das fitas, a fala do presidente, a nota oficial e os demais esclarecimentos reforçaram, sem nenhum constrangimento, o desprezo pela Lei Maior.
O leilão é uma modalidade de licitação. Essa era a única forma possível de realizar a privatização de acordo com a Carta, como reconhecem os advogados de Mendonça de Barros, Lara Resende e Pio Borges na justificativa apresentada ao Tribunal de Contas da União. Ademais, sejam ou não referentes a licitações, todos os atos da administração pública estão sujeitos aos princípios fixados pelo "caput" do art. 37.
As exigências de qualificação técnica e econômica deveriam, obrigatoriamente, constar do edital de licitação. Se não constavam, houve incompetência e irresponsabilidade do governo na sua formulação. Um edital bem preparado nem poderia admitir a participação de "aventureiros", muito menos sua vitória. Se tais exigências constavam do edital, não há como justificar as manobras reveladas pelos grampos. Qualquer "empenho em obter o melhor preço na venda do patrimônio público" deveria ter sido guiado pelos princípios constitucionais traçados no art. 37 e reforçados pelo decreto nº 2.546, do presidente, que aprovou o modelo de reestruturação e desestatização das empresas do Sistema Telebrás.
O fato de o consórcio vencedor não ter sido "aquele" apontado como beneficiado pelo governo não isenta o presidente e a sua equipe de responsabilidade e do dever de dar todas as explicações sobre o assunto. Nesse ponto, é interessante comparar o resultado do leilão com a definição que o artigo 12, inciso II, do Código Penal dá à tentativa de crime. "Diz-se o crime tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente."
Quanto ao sucesso dos resultados da privatização, não cabe aqui analisar o mérito dessa afirmação, mas vale lembrar (já que os princípios mais óbvios estão sendo esquecidos) que os fins não justificam os meios. A oposição resolveu, diante das evidências contidas naquelas conversas -não desmentidas por seus autores-, propor a instalação de CPI para apurar o processo de privatização das teles. Dessa forma, está cumprindo com o dever constitucional (de todos os parlamentares) de fiscalizar os atos do Executivo. Essa CPI seria a oportunidade de o governo se defender da forma mais completa possível.
Sustenta a base parlamentar no Congresso que não pode aceitar a investigação do que foi obtido de maneira criminosa. Todos concordamos que não podemos ter nossos telefones devassados. É preciso apurar quem fez as gravações e a mando de quem, da forma mais isenta possível. A isenção e a competência constitucional para isso são justamente do Congresso. É seu dever investigar consensualmente os grampos, que comprometem não só o governo Fernando Henrique, mas também o Estado Democrático de Direito.


André Smith de Vasconcellos Suplicy, 30, é advogado pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.

Eduardo Matarazzo Suplicy, 57, é senador pelo PT de São Paulo, doutor em economia pela Universidade Estadual de Michigan (EUA) e professor de economia da Fundação Getúlio Vargas (SP).




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