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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

O desarmamento e o referendo

MARCO MACIEL

O Senado Federal, durante a convocação extraordinária, deu passo significativo no sentido de priorizar a discussão de uma questão que é nacional: como melhorarmos o desempenho de nossas instituições, sobretudo as ligadas à segurança pública, oferecendo ao país um conjunto de medidas voltadas para a redução da criminalidade.
Como resultado desse esforço, foi aprovado o projeto de lei nº 292/99, agora submetido à apreciação na Câmara. Entre outros dispositivos, o texto proíbe, em seu artigo 28, a comercialização de arma de fogo e munição no território nacional, salvo para as entidades que especifica. Convém destacar, contudo, o que estabelece o parágrafo único do artigo: "Esse dispositivo, para entrar em vigor, dependerá de aprovação por referendo popular, a ser realizado, em data não fixada, em outubro de 2005".
Se é verdade que o uso do referendo reflete a história e as tradições de cada país, ao analisarmos a história do Brasil verificamos que, ao longo dos 114 anos da nossa vida republicana, somente em duas oportunidades recorremos à realização desse tipo de consulta popular: em janeiro de 1963 e em abril de 1993.
A primeira vez, quando o país vivia uma grande crise institucional, decorrente da renúncia de Jânio Quadros e da posterior posse de João Goulart. À ocasião, realizou-se um referendo sobre a manutenção ou não do sistema de governo em vigor -um pseudoparlamentarismo, aliás. A segunda, em virtude de determinação contida na Carta Constitucional de 1988. O eleitorado, pela sua imensa maioria, manteve a República uma atitude coerente com a "Constituição cidadã", e o presidencialismo como forma de governo.
Sabe-se também que, em todo o mundo, o recurso a tais formas de consulta popular só se realiza em casos de grande relevância. Vale a pena exemplificar:
Em 1945, Winston Churchill propôs a Clement Attlee, líder da oposição, que se fizesse uma consulta para ver se a sociedade inglesa considerava importante manter a coalizão de forças que governava o país. A Inglaterra vivia enormes problemas decorrentes do pós-guerra, mas Attlee recusou a proposta e a consulta não aconteceu.
A França recorreu a tais instrumentos em dois momentos significativos de sua história recente: em 1962, para reformar a constituição da 5ª República, estabelecendo a eleição direta do presidente e instaurando o regime semipresidencialista, que vigora até hoje, dando início à "coabitação"; e 30 anos depois, com a decisão de François Miterrand de convocar um referendo sobre o Tratado de Maastricht, que quase levou ao colapso da União Européia, quando somente 51% dos eleitores se manifestaram favoravelmente à sua ratificação.
Na extinta União Soviética realizou-se, em 1991, o referendo proposto por Gorbatchov para a criação da CEI (Comunidade de Estados Independentes). Posteriormente, com a deposição de Gorbatchov e a ascensão de Yeltsin, 17 Repúblicas abandonaram a CEI, que se transformou na atual Rússia -onde, em 1993, houve dois referendos: o primeiro para aprovação de eleição direta para presidente, voto de confiança em Yeltsin e aprovação da política econômica (privatizações); e o segundo para aprovação da nova Constituição.


A proibição da comercialização de arma de fogo é uma matéria que cabe privativamente ao Congresso dispor


Já os Estados Unidos nunca realizaram consultas plebiscitárias em nível federal, embora a prática seja muito adotada em condados e em alguns Estados.
Favorável a medidas destinadas a ampliar a participação popular, tendo inclusive apresentado projeto regulamentando o artigo 14 da Constituição, que dispõe sobre o assunto, entendo que esses mecanismos só devem ser exercitados quando estamos diante de problemas de grande expressão, que justifiquem o recurso ao sufrágio popular.
Umberto Eco, em artigo intitulado "Votação no Ciberespaço" -publicado em 1997, quando se discutia os passos e os avanços que a União Européia vem adotando-, refere-se a uma "noção idealizada da democracia ateniense" como paradigma de democracia direta e traça um paralelo com os anseios da sociedade moderna, ao destacar o papel do referendo como instrumento de participação política: "O que traz o referendo para as discussões é a possibilidade de interpelar todos os cidadãos sobre algumas questões excepcionais, nas quais o juiz supremo deve ser o senso comum (...), mas não sobre problemas que exigem competência específica e, muitas vezes, técnica". Ilustrativamente, Eco refere-se à capacidade limitada do cidadão de formar opinião questionando a si mesmo: "Por que não consegui formar uma opinião a esse respeito, mesmo sendo uma pessoa culta?". E responde, em seguida: "Porque tenho capacidade de adquirir informações em certos setores, mas não em outros (...) Eles [os parlamentares] têm tempo para formar uma idéia competente sobre essas questões e também o dever de fazê-lo".
De mais a mais, um referendo tem um custo financeiro muito alto. Somos hoje mais de 115 milhões de eleitores, e certamente seremos muitos mais em 2005. Some-se a tudo isso o fato de que uma consulta dessa natureza pressupõe também uma prévia campanha de esclarecimento, semelhante a uma eleição.
Por fim, a proibição da comercialização de arma de fogo e munição é, a meu ver, uma matéria que cabe privativamente ao Congresso dispor no exercício de sua prerrogativa de legislar. Daí considerar, por todos os títulos, desnecessário o Congresso Nacional aprovar a realização do mencionado referendo.


Marco Maciel, 63, é senador pelo PFL-PE. Foi vice-presidente da República (1995-1998 e 1999-2002).


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