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São Paulo, domingo, 03 de agosto de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Os sem-teto do Poder Judiciário

SAULO RAMOS

Reformar a Constituição é sempre impactante. Cria tensões, desperta conflito de interesses, aguça ambições doidivanas, desarruma preceitos, ameaça princípios que se presumem assentados pelo direito fundamental.
No Brasil, porém, reforma-se a Lei Maior sem nenhuma cerimônia. Os militares alteravam o direito constitucional quase toda semana. Nos governos democráticos, instaurados depois de uma dolorosa Constituinte, as emendas reformadoras já passam de 40 em apenas 15 anos. A principal razão: dinheiro para a contabilidade. Este é o ponto, o direito maior é editado sempre em razão das crises de tesouraria, e jamais inspirado pela ciência jurídica e na evolução social. O poder constituinte não é mais a formulação das garantias fundamentais no Estado democrático, transformou-se em regra de contadores.
Creio eu que o atual governo cometeu, entre outros, um erro grave: propor duas reformas contábeis, a da Previdência e a tributária, de uma vez só. Ambas concebidas apenas por economistas que, quando estão no governo, só têm um jeito de raciocinar: mais dinheiro para o Tesouro e mais tesoura nas despesas. Nenhum jurista foi convocado para ponderar a coerência das normas sob um mínimo de técnica legislativa que evitasse agressões aos princípios fundamentais do direito constitucional ou alguma prudência que amenizasse os choques previsíveis quando se mudam regras básicas do contrato social.
Estou falando de juristas que entendam de direito constitucional, e não simplesmente de juros. E aconteceu o que tinha de acontecer. Ouvidos foram os governadores, assessorados por outros economistas, e resultou no de sempre -aproveitar a oportunidade (o gancho) para melhorar a arrecadação e cortar despesas com pessoal, inclusive a barbaridade de desvincular o mínimo de recursos destinados à saúde e à educação. Esse é o principal fundamento do "moderno" direito constitucional em nosso país, que acaba concebido contra o servidor público, contra a magistratura, contra serviços essenciais, contra o contribuinte e contra o próprio direito.
Na reforma da Previdência, que deveria tratar da seguridade social e das aposentadorias, incluiu-se sub-repticiamente um elefante, a parte mais substancial da reforma do Judiciário: os vencimentos, hoje chamados de subsídios, dos juízes. E configuraram as contabilidades de maneira a acabar, no futuro, com a própria estrutura do Poder Judiciário, afastando da carreira os vocacionados de maior competência, pois ninguém vai suportar uma vida distribuindo Justiça e atualizando-se em estudos caros, impedido de qualquer outra atividade (salvo a de professor, que ganha miséria), para aposentar-se no ora veja.
Ora, se o problema é de caixa, por que não permitir que o povo saiba onde está o rombo e quais as causas? Na questão da aposentadoria do servidor público, a Constituição manda que o sistema seja atuarial (art. 201), isto é, pagam-se contribuições para sustentar os que se aposentam. Não existe verba orçamentária. Logo, se o direito institucional ordena a absoluta separação de Poderes, pode-se harmonicamente autorizar que cada Poder regule, por lei complementar, a aposentadoria de seus servidores. Sistema atuarial em vala comum é mentira, meio infalível para o desvio recursos. E por que regulá-lo na Constituição?


Queiram ou não, as funções do juiz têm direta e profunda importância para a vida de cada brasileiro


E o subteto? A proposta de reforma, nesse ponto, é de uma violência digna de chamar o alemão Otto Bachoff, aquele que tratou de normas inconstitucionais na Constituição. Atualmente, nas disposições permanentes, art. 93, inciso V, os juízes estaduais têm direito a até 90% dos subsídios dos ministros do STF. Querem reduzir a 75%, a pedido dos governadores, como se o comando constitucional fosse um risco n'água. Dentro de quatro anos mudam-se os governadores e vamos reformar a Constituição para mudar o percentual. Mas, gritam os tesoureiros, existe uma juíza do Nordeste que recebe R$ 52 mil por mês! Esta é uma das exceções e um outro tipo de sem-teto -o espertinho que ganha acima do teto. Mas, nesses casos, basta cumprir a Constituição e aplicar o art. 17, das disposições transitórias, que manda reduzir os vencimentos, remuneração, vantagens e adicionais que, a qualquer título, sejam recebidos fora do limite, pois naquele artigo está declarado que, para o excesso, não há direito adquirido. Em alguns aspectos, em vez de reformar a Constituição, seria melhor ler a atual.
Queiram ou não, as funções do juiz têm direta e profunda importância para a vida de cada brasileiro e para as instituições. Por meio de uma sentença, o magistrado dispõe, com absoluta independência e inteira soberania jurisdicional, sobre a liberdade das pessoas, o patrimônio dos cidadãos, todos os direitos que a cada um de nós são assegurados pelo sistema jurídico e que de nada valeriam sem juiz que os aplicasse. Por isso age sem chefe que lhe dê ordens. Essa é a carreira de Estado.
Evidentemente esse agente do Estado de Direito precisa, no mínimo, de tranquilidade para proferir julgamentos. O povo sabe disso por instinto de conservação. E intui que a possibilidade de acabar com a carreira, ou possibilitar que nela ingressem os cortadores de cana que estão se formando nas indústrias de diplomas fáceis, será uma tragédia para a segurança de seus próprios direitos. As lideranças do Congresso são sensíveis a essas verdades absolutas e resistirão aos especialistas em contas de chegar porque, para estes, nunca há o que chegue. E, em defesa da ciência constitucional, merecem um "chega pra lá".


José Saulo Pereira Ramos, 74, é advogado. Foi consultor-geral da República e ministro da Justiça (governo Sarney)


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