São Paulo, segunda-feira, 03 de setembro de 2007

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A democratização do acesso à Justiça

CRISTINA GUELFI GONÇALVES


Não faz sentido a Defensoria Pública ter que propor milhares de ações idênticas se há um meio de atuar com uma única ação


HÁ MAIS de duas décadas, a legislação brasileira introduziu no nosso sistema processual a ação civil pública. O Código de Processo Civil, marcado por uma concepção notadamente individualista, já não mais se adequava à dinâmica moderna das relações sociais e não satisfazia à complexidade decorrente de uma sociedade de massa.
A defesa coletiva dos direitos dos cidadãos constituiu um verdadeiro marco no movimento universal do acesso à Justiça, permitindo a racionalização dos esforços voltados à garantia de direitos, vez que o instrumento enfeixa, em um único processo, a pretensão de um conjunto de pessoas, permitindo ao Poder Judiciário decidir questões que envolvam centenas ou milhares de pessoas por meio de apenas uma sentença.
Evita-se, assim, que sejam proferidas decisões contraditórias sobre o mesmo tema e se inibe a reprodução de milhares de processos individuais de idêntico teor, que, de regra, entulham os nossos já sobrecarregados tribunais.
No Brasil, após a implementação do novo mecanismo, o Código de Defesa do Consumidor, aprovado no início dos anos 90, aperfeiçoou a sistemática, dando a todas as entidades públicas que atuam na defesa dos interesses e direitos do consumidor, como Defensoria Pública e Procon, a possibilidade de manejo de tal instrumento, a fim de emprestar maior efetividade ao sistema nacional de proteção concebido naquela importante lei.
Desde então, a Defensoria Pública tem proposto ações civis públicas, visando otimizar a sua atuação de garantir o acesso à Justiça à população carente, o que vem sendo plenamente admitido pelos tribunais brasileiros. No início deste ano, foi sancionada pelo presidente da República a lei nš 11.448, que atribuiu, de forma expressa e ampla, à Defensoria Pública a legitimidade para uso do instrumento.
No entanto, no dia 20 de agosto, a Conamp (Associação Nacional dos Membros do Ministério Público) ajuizou uma ação no Supremo Tribunal Federal buscando a declaração de inconstitucionalidade dessa nova lei, argumentando que a possibilidade de a Defensoria Pública propor ação civil pública afetaria diretamente atribuição do Ministério Público prevista na Constituição Federal.
O argumento causa estranheza num momento em que a pauta do acesso à Justiça parece ter finalmente entrado na agenda das discussões nacionais.
Primeiro, questiona-se por que apenas a legitimidade da Defensoria Pública seria capaz de afetar diretamente as atribuições institucionais do Ministério Público, e não a de outras entidades que também têm legitimidade pela lei, como União, Estados, municípios e associações civis constituídas há pelo menos um ano.
Segundo, não faria sentido que a Defensoria Pública propusesse centenas ou milhares de ações idênticas, abarrotando o Judiciário, se existe um meio de atuar em prol das centenas e milhares de pessoas com uma única ação, contribuindo para a celeridade da Justiça.
A democratização dos instrumentos de acesso à Justiça, antes de dividir, deve ser vista como um fator de soma na busca de uma sociedade mais livre, justa e solidária, efetivando dessa forma um dos mais importantes objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil previsto na Constituição Federal.
A Defensoria Pública não busca a exclusividade na propositura da ação civil pública, mas que, isto sim, essa ação seja um meio para atacar e corrigir as violações de direitos, em especial de direitos sociais, sofridas pela população carente.
Como tem feito a Defensoria Pública do Estado de São Paulo, por exemplo, quando propôs ação civil pública para garantir a manutenção da coleta seletiva por meio de cooperativas de catadores de material reciclável, buscando a efetividade do Plano Diretor do município de São Paulo ou, ainda, para garantir que ex-moradores do edifício São Vito continuassem a receber o bolsa-aluguel, pois foram tirados de seus apartamentos sem garantia de realocação em outro imóvel e os pagamentos seriam cessados.
A Defensoria Pública pretende desempenhar suas atribuições com responsabilidade, imbuída do senso de que seus membros são servidores públicos que devem salvaguardar os direitos da população pobre brasileira, que representa significativa parcela da população nacional. E, por isso, temos certeza da constitucionalidade da legitimidade conferida à Defensoria para propor ação civil pública.

CRISTINA GUELFI GONÇALVES , 37, é defensora pública-geral do Estado de São Paulo e presidente do Conselho Nacional de Defensores Públicos-Gerais.


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