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São Paulo, segunda-feira, 03 de novembro de 2003

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Demolir foi fácil, já construir...

MARIO CESAR FLORES


Até recentemente havia no Iraque um líder e um regime que, mal ou bem, mantinham a complicada unidade ditatorial do país

A história é fértil em exemplos de crises decorrentes da demolição de estruturas políticas mantidas artificialmente unitárias pela força centrípeta de algum tipo de poder, superior à força centrífuga da diversidade. No século 20 há que destacar a confusão africana, quando o ocaso do controle colonial abriu espaço para Estados frágeis, envenenados por paixões étnicas e religiosas e flagelados pela miséria.
Para este artigo, mais interessante foi o problema ocorrido na última década do século, nos Bálcãs: o da Iugoslávia, país produto da Primeira Guerra Mundial, revigorado ao final da Segunda Guerra sob a égide do ideário comunista e de seu líder Tito, cuja morte, contemporânea do início do crepúsculo da ilusão comunista, desembocou na divisão em cinco países envenenados por paixões étnicas e religiosas.
Enquanto Tito viveu e era forte o seu ideário, enquanto havia uma idéia e um líder, a Iugoslávia foi unitária, ainda que um tanto relutantemente; extintos ambos, a região voltou à conflituosa tradição balcânica, em que atua há seis séculos um fator desestabilizador, o islamismo em região basicamente cristã.
Essas considerações vêm a propósito hoje: estamos vivendo o primeiro caso do século 21 de desestruturação de uma ordem política autoritária e unitária na diversidade, a ser substituída por outra que, otimisticamente, deverá ser democrática e unitária na mesma diversidade. Essa afirmação refere-se ao Iraque, cujo território, com seu entorno, vem sendo, há milênios, teatro de conflitos que têm posto em confronto povos de raças e crenças religiosas diversas; no tocante especificamente à religião, nem mesmo o abrangente domínio islâmico produziu estabilidade: tem sido particularmente sensível nela a milenar rivalidade entre sunitas e xiitas.
Até recentemente havia no Iraque um líder, Saddam Hussein (o quão maligna foi sua liderança é irrelevante para o raciocínio aqui desenvolvido), e um regime de ideário nacional-redentorista que, mal ou bem (sobre o mal, cabe perguntar aos curdos e xiitas), mantinham a complicada unidade ditatorial do país. Extinto o regime e "fora de ação" seu líder, por força da vitória militar norte-americana e inglesa, deparamo-nos agora com o problema da reconstrução do país, sob alguma modalidade de unidade nacional com democracia -problema que vem se manifestando mais complicado do que a vitória militar.
A pergunta que se impõe é: sem um ideário unificador (seria viável algum, nas circunstâncias iraquianas?) e sem uma liderança forte que o faça atuante "na marra", será possível recriar um Iraque unitário, com paz interna?
Talvez seja, em curto prazo, "sob a firme tutela em força, do poder vencedor"; mas a unidade em paz resistirá após a inexorável retração dessa tutela? Em particular, será viável a unidade com democracia -se a democracia, em seu viés ocidental, for culturalmente plausível no Oriente Médio- em país dividido por paixões étnicas e religiosas e por ressentimentos decorrentes do cruel passado recente?
Ou acabaremos tendo um Estado curdo mais ou menos autônomo, para desgosto da Turquia e do Irã, onde a questão curda também incomoda, e dois Estados mais ou menos autônomos, um xiita e outro sunita, talvez com uma penosa migração rearrumadora, da natureza da que ocorreu quando da criação da Índia e do Paquistão?
É difícil construir os alicerces políticos e socioeconômicos da paz, com democracia e unidade nacional, na diversidade do Iraque impregnado por um caldo de cultura conflituoso, não mais controlado por duro regime redentorista e seu líder, de cruel prática fascista.
Se a tutela dos vencedores falhar nessa construção -o que parece estar acontecendo-, é de esperar um futuro breve de conflitos eventualmente não contidos nas fronteiras do Iraque, dadas as ligações de seus problemas com outros, entre eles o crítico Israel-Palestina e o curdo, de tríplice presença (Turquia, Irã e Iraque).
Provavelmente a região viverá um drama da natureza da tumultuada década dos 1990 nos Bálcãs, com um agravante: não há no mundo ocidental unidade de perspectiva capaz de induzir uma interveniência estabilizadora consensual -que, aliás, no caso balcânico só aconteceu em razão da insanidade genocida da liderança sérvia.


Mario Cesar Flores, 72, é almirante-de-esquadra reformado. Foi secretário de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (governo Itamar Franco) e ministro da Marinha (governo Collor).


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