São Paulo, quarta-feira, 03 de novembro de 2004

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ANTONIO DELFIM NETTO

Estado de espírito

Quando se diz que o desenvolvimento é um "estado de espírito" que floresce quando um governo abriga e protege, sem temores e sem restrição ideológica, as condições para a expansão do "espírito animal" dos empresários, não se está dizendo, obviamente, que o desenvolvimento se faça sem adequadas condições objetivas, como a existência de infra-estrutura, a disponibilidade de mão-de-obra e sua qualidade, a disponibilidade de um estoque de bens de capital que incorpora uma dada tecnologia etc. E mais. O desenvolvimento, medido como a taxa de crescimento do PIB, é um fenômeno dinâmico, que depende dos acréscimos, no tempo, da mão-de-obra disponível e do seu aperfeiçoamento, dos acréscimos líquidos do estoque de capital, no tempo, que substitui o capital utilizado no processo produtivo (depreciação) por novo capital (que incorpora a inovação tecnológica) e da capacidade e imaginação do empresário de combiná-las. O último é o fator decisivo.
O que se quer dizer é que a cooperação da ação de um governo amigável (na educação e na saúde da mão-de-obra e no estímulo à criação de novas tecnologias) com o "espírito animal" do empresário leva a insuspeitadas combinações produtivas, incapazes de serem apreendidas numa "função de produção". Mas por que "espírito animal"? Porque, numa larga medida, os verdadeiros empresários, isto é, aqueles que tomam o risco de novos investimentos em bens de capital, se apóiam não em fórmulas mágicas produzidas por equações diferenciais estocásticas (como fazem os "rentistas"), mas em sua "intuição", em sua capacidade de "sentir", por antecipação, a demanda que está chegando às prateleiras.
É por isso que a tal produtividade total dos fatores (o famoso resíduo de Solow) é apenas a caixa-preta desconhecida que iguala um indicador qualquer de produção física global à pretendida "função de produção". Esta contém, ao mesmo tempo, a função de produção de uma sorveteria de Sorocaba e da sua vizinha, a Companhia Brasileira de Alumínio...
Uma prova indireta de que o "produto potencial" é um conceito platônico, que vive sua perfeição no mundo das idéias, é o sucesso relativo da Teoria dos Ciclos Reais, que acaba de receber o Prêmio Nobel de Economia. Usando apenas o resíduo de Solow (isto é, exatamente o que a função de produção não "explica") somado às hipóteses neoclássicas levadas ao paroxismo, C.I. Plosser "explicou" dois terços das flutuações do PIB americano. Uma daquelas hipóteses é o equilíbrio instantâneo em todos os mercados, em particular o do trabalho, o que implica que todo "desemprego é voluntário", produzido pelos trabalhadores quando tentam maximizar o seu "bem-estar"! É apenas uma nova versão (de outro Prêmio Nobel), a de que o desemprego seria apenas um ataque de preguiça que, de vez em quando, infecta os trabalhadores! O "corpo" da função de produção -a combinação entre os fatores trabalho e capital- não tem nenhum papel no modelo!
Ajustando o famoso argumento ontológico de santo Anselmo (assegurando a existência de Deus) para "provar" a existência da função de produção, o nosso Banco Central corre o risco 1º) de voltar a adormecer o "espírito animal" de nossos empresários que estão produzindo o desenvolvimento e 2º) de levar o governo a acreditar que eles são incapazes de fazê-lo e, portanto, deve-se procurar outro caminho...


Antonio Delfim Netto escreve às quartas-feiras nesta coluna.

dep.delfimnetto@camara.gov.br


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