São Paulo, terça-feira, 03 de dezembro de 2002

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

TENDÊNCIAS/DEBATES

Lula presidente: o sentido histórico

FÁBIO KONDER COMPARATO

À trilogia clássica dos regimes políticos -monarquia, oligarquia e democracia-, tal como estabelecida pela filosofia grega, corresponde logicamente uma classificação das personalidades políticas. Temos, assim, conforme o temperamento pessoal e a forma de atuação na vida pública, políticos individualistas, oligárquicos e democráticos.
Os do primeiro grupo consideram-se sempre autolegitimados a buscar e a exercer o poder em nome próprio, dispensando qualquer espécie de representação.
É o tipo mais primitivo de personalidade política, dominando a cena histórica no Ocidente, quase sem concorrentes, até o final do século 18. Na América Latina, ele sempre proliferou sob a figura de ditadores, caudilhos ou coronéis. Nos tempos modernos, quando a democracia entendida como simples processo eletivo dos governantes tornou-se uma idéia-força, o político individualista ou autocrático tendeu naturalmente ao populismo. Ou seja, para ele o voto popular não tem nenhum efeito representativo, mas é mera fórmula de consagração pessoal. Mesmo quando busca sinceramente o bem do povo, o político dessa espécie está firmemente convencido de que esse objetivo somente poderá ser alcançado por ele próprio e mais ninguém.
Já o agente oligárquico reconhece a sua incapacidade de agir de modo independente na vida pública, e prefere atuar como representante de grupos, classes ou corporações: o empresariado, as Forças Armadas, corporações religiosas, minorias lingüísticas ou culturais etc.
Na América Latina, esse tipo de político aparece tardiamente, devido, sobretudo, ao atraso histórico na instauração de um capitalismo moderno, industrial e urbano, bem como na organização burocrática, isto é, impessoal das Forças Armadas. Após a 2ª Guerra Mundial, no Brasil, muitos políticos conservadores, desligando-se do coronelismo tradicional, procuraram atuar como mandatários do empresariado urbano, mas acabaram por alistar-se desonrosamente, a partir de 1964, como serviçais dos chefes militares, estes sim, quase todos disciplinados representantes da corporação armada.
Fernando Henrique Cardoso protagonizou a mais recente experiência de política oligárquica, após a tentativa frustrada das classes dominantes de domesticar o individualismo indecoroso de Collor. Ele sempre quis se apresentar como o anti-Getúlio (exemplo de personalismo bem sucedido e, por isso, altamente suspeito para os núcleos tradicionais de poder), e pretendeu seguir outro modelo vitorioso, o de Juscelino, em que as classes dominantes governam com o apoio popular. Não deu certo, não só pelo caráter auto-suficiente do personagem, mais afeito à representação teatral do que à de tipo político, como ainda pela falência, em todos os países da periferia, do modelo de capitalismo globalizante, que o presidente adotou como política nacional, de modo irresponsável e antipatriótico.
Chegamos, assim, pela lógica inexorável dos fatos históricos, a uma nova geração de políticos, para os quais o povo não é uma massa amorfa de pessoas, ignorante e desinteressada da coisa pública, a ser permanentemente tutelada.


Pela primeira vez, o povo dominado percebe que pode assumir a posição de soberano


Reconhecendo a evidência de uma separação entre dominantes e dominados na sociedade, e a incongruência de se pretender atuar simultaneamente como representante de ambos os lados, os políticos da nova estirpe optaram pela defesa do povo no sentido romano de "plebs", ou seja, o conjunto das classes e grupos sociais, despidos de poder econômico, e que nunca puderam impor a sua vontade aos governantes.
Aristóteles já havia sustentado, com notável realismo, que a democracia é o regime da soberania dos mais pobres. Ora, para que isto se torne uma realidade, em futuro não muito distante, é preciso ajudar o povo dominado a se organizar, a fim de que ele possa exercer diretamente o poder supremo. Mas exercê-lo não em seu próprio e exclusivo benefício, como sempre fizeram os grupos oligárquicos, e sim para a realização do bem comum do conjunto dos cidadãos, o "populus" da tradição romana.
Exatamente por isso, o atual momento político é de singular importância na história do nosso país. Pela primeira vez, o povo dominado percebe que pode assumir a posição de soberano. Pela primeira vez, a chefia do Estado é atribuída a alguém que, saindo das camadas populares mais pobres, não renega a suas origens nem se bandeia para o lado dos oligarcas; antes, declara-se pronto a construir, lado a lado com os seus, os alicerces de uma sociedade comunitária, na qual todos tenham, enfim, condições de nascer e viver livres e iguais, em dignidade e direitos.
O que cabe, portanto, a nós, integrantes da velha minoria privilegiada, é fazer com que esse momento único na história brasileira não seja fugaz. É nosso dever de cidadania lutar, com todos os meios à nossa disposição, os quais sempre foram negados à maioria carente, em prol da institucionalização da democracia participativa, impedindo com isto que o povo, mal chegado ao poder, volte outra vez à indigna condição de subordinado.
Lula presidente é a prova de que um outro mundo é possível.


Fábio Konder Comparato, 66, jurista, doutor pela Universidade de Paris, é professor titular da Faculdade de Direito da USP e doutor honoris causa da Faculdade de Direito de Coimbra. É autor, entre outra obras, de "A Afirmação Histórica dos Direitos Humanos" (Saraiva)


Texto Anterior: Frases

Próximo Texto: Alberto Goldman: Democracia, pacto social e os enigmas de Lula

Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.