São Paulo, terça-feira, 03 de dezembro de 2002

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Democracia, pacto social e os enigmas de Lula

ALBERTO GOLDMAN

A existência e o respeito à Constituição e às leis que dela emanam é o verdadeiro pacto que se estabelece em uma sociedade democrática. Acabamos de realizar um processo eleitoral que determinou a quem caberá o exercício do Poder Executivo e a composição do Congresso Nacional, dois dos pilares da nossa recente reconstrução democrática. Das suas decisões sairão os rumos que serão impostos à vida dos milhões de brasileiros.
Projetos da iniciativa do presidente da República e dos parlamentares eleitos serão discutidos e votados. A participação dos grupos organizados da sociedade no processo de elaboração das matérias e, posteriormente, nos debates públicos durante a sua tramitação, é fato desejável e necessário. O resultado disso tudo será a definição de maiorias e minorias, aquelas vitoriosas, que obriga a todos e estabelece a direção do processo de desenvolvimento que todos afirmam desejar.
Os caminhos assim traçados serão produto não de um consenso absoluto, mas de uma decisão majoritária. Eles não atenderão a todos os desejos. Existirão ganhadores e perdedores. Assim é a democracia. Nela se afere, tão somente, a vontade majoritária, expressa pelo Congresso Nacional e sancionada pelo presidente da República, no pressuposto de que dessa forma articula-se o desenvolvimento econômico e pratica-se a justiça social.
Imaginar que se possa concluir por decisões consensuais é ter uma visão ingênua dos interesses que permeiam a sociedade brasileira. A experiência tem demonstrado que o que se consegue quando a decisão é unânime, ou quase unânime, é um resultado paralisante que impede que se atinjam os objetivos desejados.
Os conflitos em nosso país, como certamente na maioria deles, são profundos. Eles existem porque a realidade histórica produziu parcelas da sociedade que se integram de maneira distinta no processo de desenvolvimento do país. Formaram-se, assim, ricos e pobres, incluídos e excluídos, privilegiados e marginalizados. Pretender romper com essa cruel realidade é enfrentar poderosos interesses que se expressam pelo poder político que adquiriram. Buscar um desenvolvimento equilibrado, em que essas diferenças sejam diminuídas, significa transferir riqueza e renda, tirar de alguém para dar a outro. As reações serão duras e poderosas.


A partir dos próximos dias, os discursos e as imagens coloridas terão de ser substituídos por ações concretas


Essas considerações as fazemos face à estratégia do novo governo Lula de propor um chamado pacto social. Acreditamos que ela nasce do fato de que, do ponto de vista eleitoral, o PT obteve milhões de votos que partiram de pessoas que anseiam por uma mudança nas políticas de governo e que não tiveram consciência das limitações e dos obstáculos que existem. O PT, exatamente porque não queria, por razões eleitorais, explicitar essas limitações e obstáculos e, muito menos, quais seriam as formas -se as tem- de superá-los, vendeu apenas a esperança, uma esperança sem a consistência de propostas concretas. A idéia do pacto é uma tentativa de ganhar tempo, assumir o governo e tentar responder àquela esperança com projetos e caminhos que o futuro possa indicar. O chamado projeto Fome Zero faz parte dessa estratégia.
No entanto, a partir dos próximos dias, os discursos e as imagens coloridas terão de ser substituídos por ações concretas, a começar pela escolha do ministério. A lógica e o bom senso consistiriam em estabelecer claramente o caminho a ser seguido no rumo do desenvolvimento desejado e constituir uma equipe e uma aliança que possam realizá-lo, de maneira que se expresse por uma maioria no Congresso Nacional. Porém, se ele não foi explicitado durante a campanha eleitoral, como fazê-lo agora? Como colocar, ao mesmo lado, no exercício do poder, para realizar um mesmo projeto, interesses e ideologias, além de figuras e forças políticas e sociais, tão díspares, inclusive entre as correntes do próprio PT, que se juntaram com um único objetivo, já conquistado: o de derrotar o governo atual? O que foi útil para a vitória eleitoral é inviável para governar!
O pacto social -expresso pela proposta do amplo conselho de entidades e personalidades- não resolve a questão. Ao se colocar os temas a serem enfrentados -a reforma política, a reforma tributária, a reforma previdenciária, para só citar as mais importantes- os conflitos emergirão, no conselho e no Congresso. Inevitavelmente o Executivo terá de decidir a quem procurará atender e, com isso, definir quais serão suas alianças. Não são poucos os enigmas a serem resolvidos pelo novo presidente.
De nossa parte, do PSDB, na oposição por decisão das urnas, Lula pode esperar toda a boa vontade para realizar as reformas que são necessárias, as mesmas que nos negou nos últimos anos. Mas deverá explicar à opinião pública porque lhe vendeu uma esperança que não pode concretizar.


Alberto Goldman, 65, deputado federal (PSDB-SP), é vice-presidente da Executiva Nacional do partido. Foi ministro dos Transportes (governo Itamar Franco) e secretário da Administração do Estado de São Paulo (governo Quércia)


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