São Paulo, sexta-feira, 04 de fevereiro de 2005

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Imprudência fatal

ARTHUR GUERRA DE ANDRADE

Carnaval, além de quatro dias ininterruptos de festa, lembra praias lotadas, estradas cheias e muita gente aproveitando para "dar folga" aos problemas do dia-a-dia e extrapolar um pouquinho na bebida. Boa parte, infelizmente, em situações que colocam em risco suas vidas e as de outras pessoas. Refiro-me àqueles que vão beber, mas não abrirão mão de dirigir. Segundo a Polícia Rodoviária Federal, na semana entre o Natal e o Ano Novo ocorreram 2.167 acidentes em estradas brasileiras. As principais causas: imprudência e excesso de velocidade. Ora, não é exatamente isso o que acontece quando se consome bebida alcoólica e se dirige?


O uso inadequado de álcool é o principal responsável pelos acidentes de trânsito fatais em nosso país


Recentemente, o Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool) desenvolveu uma série de entrevistas sobre o tema "Uso de álcool e acidentes de trânsito". Reproduzimos aqui os principais pontos levantados por importantes especialistas brasileiros no assunto. Mas já podemos adiantar que o uso inadequado de álcool é o principal responsável pelos acidentes de trânsito fatais em nosso país. E, mais do que isso, precisamos mudar nossos hábitos e parar de insistir nessa imprudente combinação -caso contrário, as estatísticas continuarão crescentes, preocupantes e vergonhosas.
Embora haja carência de informações que permitam avaliar com rigor a relação entre o uso abusivo de álcool e a quantidade e seriedade dos acidentes com veículos, todos os especialistas concordam que o problema é extremamente grave e deve ser prioridade na política nacional de trânsito.
Uma pesquisa de 1997, realizada pela ABDetran (Associação Brasileira dos Departamentos de Trânsito) em quatro capitais brasileiras, apontou indícios de alcoolemia em 61% das vítimas de acidentes, das quais 27,2% delas tinham mais do que os seis decigramas de álcool por litro de sangue permitidos por lei. A mesma pesquisa revelou que, entre os motoristas mortos e feridos, 75% haviam ingerido alguma quantidade de bebida alcoólica e que, desses, 30% apresentavam níveis de álcool superiores ao permitido. Outro estudo, de 1999, feito pelo IML de São Paulo, mostra que 47% das pessoas mortas em colisões e atropelamentos tinham álcool no sangue no momento do acidente.
A responsabilidade por essa situação é de toda a sociedade. Impera em nosso país uma cultura de não-cumprimento das leis que, aliada à certeza da impunidade, faz com que os motoristas, especialmente os mais jovens, insistam, mesmo sob efeito do álcool, em conduzir seus automóveis, ainda que conheçam os riscos de dirigir embriagado. Com coragem excessiva e respostas visual e motora prejudicadas, esses motoristas aumentam de forma exponencial a probabilidade de se envolverem em acidentes.
Para tentar mudar esse quadro, podemos apontar uma série de iniciativas. A começar pela realização de pesquisas epidemiológicas que forneçam informações abrangentes e qualificadas sobre o problema. Outras ações importantes: aperfeiçoamento da legislação, fiscalização eficaz e permanente por parte das autoridades competentes, punição exemplar dos infratores associada à conscientização do cidadão e criação de uma entidade responsável por realizar estudos e elaborar propostas técnico-políticas que proporcionem embasamento conceitual e metodológico a respeito da oferta e consumo de álcool.
Entre as principais dificuldades para colocar essas iniciativas em prática está a possibilidade de o motorista suspeito de estar embriagado se recusar a fazer o teste do bafômetro. De acordo com a lei, ninguém é obrigado a fornecer provas contra si mesmo, o que impede, principalmente nessa situação, a ação dos agentes fiscalizadores.
Outro problema está no fato de que as pessoas avaliam muito mal o grau de comprometimento de suas habilidades sob o efeito de bebidas alcoólicas. Assim, é fundamental que não só sejam criadas leis que obriguem os motoristas a se submeterem ao exame como também seja consolidado, por meio de programas de longo prazo, um conjunto de ações sistemáticas relacionadas à educação do motorista e à fiscalização.
Falta modificar o enfoque da lei, transferindo o ônus da prova para o suspeito, que teria o teste do bafômetro como opção de defesa. Igualmente obrigatória deveria ser a coleta de sangue para o teste de alcoolemia a todo condutor hospitalizado envolvido em acidentes. Enfim, mudar esse quadro é uma tarefa multidisciplinar e intersetorial. Implica responsabilidade compartilhada entre o governo e a sociedade civil. A relação entre álcool e direção deve estar no primeiro plano de nossas preocupações, de nossa responsabilidade com o presente e também com o futuro.

Arthur Guerra de Andrade, 50, médico psiquiatra, professor de psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP, é diretor do Grea (Grupo Interdisciplinar de Estudos de Álcool e Drogas, do Instituto de Psiquiatria da Faculdade de Medicina da USP) e presidente-executivo do Cisa (Centro de Informações sobre Saúde e Álcool).


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