São Paulo, quinta-feira, 04 de março de 2004

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TENDÊNCIAS/DEBATES

Estado e mercado, fronteiras da corrupção

FRANCISCO DE OLIVEIRA

A corrupção de alto funcionário do governo federal inscreve-se nas dúbias relações entre o Estado e o mercado no capitalismo, uma zona de sombra que ganha em complexidade e se avoluma. É urgente compreender sua matriz geral, aprimorando os mecanismos pelos quais a sociedade e o Estado podem se resguardar do assalto ao tesouro público. Basta olhar para os contratos da "reconstrução" do Iraque e para as empresas beneficiadas pelo fundamentalismo de mr. Bush, essa ascese laica radical do calvinismo e suas derivações: ganhar dinheiro e matar podem ser faces da mesma moeda da "vocação". Os negócios privados estão isentos da corrupção -a ciência econômica operou sua prévia absolvição e chama-a de "concorrência".
Jogos, obras e serviços públicos são exemplos concretos dessas zonas de sombra em que o mercado não pode construir preços por razões teóricas que seria fastidioso explicar. A corrupção é um modo de decifração da incerteza estrutural, nem simplesmente constitutiva da política, nem sua denúncia reduz-se a hipocrisia. É, antes, ausência da política e, por isso mesmo, seu combate não pode ser esconder a cabeça na areia, típica do pânico petista atual. Como o movimento do capitalismo global contemporâneo é incessante, caducando rapidamente regras anteriormente estabelecidas, a política tem como tarefa construir recorrentemente novas regras que busquem lançar luz sobre as esquivas relações.


Ao aprofundar o desmantelamento do Estado, o PT amplia as zonas de sombra e cava seu próprio fosso


O problema do PT no poder é o de desconhecer tal complexidade e de faltar-lhe uma cultura republicana vigorosa, justamente nessa época de rápida caducidade institucional. Uma crença ingênua no mercado, sinal de indigência teórica, e interesses inconfessos preparam o terreno para que prospere o "ad hoc" em que novos interesses buscam burlar as regras estabelecidas. Na história do capitalismo, tais interesses, exatamente porque não se circunscrevem às regras anteriores, podem ser confundidos com bandidagem. Mas isso não pode constituir um elogio às formas falsas, como se fossem portadoras do progresso -na verdade, exploram as insuficiências dos sistemas institucionais, que têm dificuldade para entender o novo, porque a ordem vigente defende os interesses já constituídos. Numa dessas brechas, a da incapacidade de regular os novos meios eletrônicos, prosperam os bingos e as lavagens de dinheiro, não como portadoras do novo, mas como exploradoras do velho.
O PT e o governo federal não são vítimas inocentes da bandidagem: ao caçar as bruxas "radicais" e ao ampliar o leque de alianças ao ponto de descaracterizar o que é a política, que não é soma, mas divisão, o PT e o governo federal estão criando as condições para que cresçam a chantagem, o jogo sujo e a corrupção. Ao aprofundar o desmantelamento do Estado, o PT amplia as zonas de sombra e cava seu próprio fosso. Simulacro do PRI mexicano, que após uma revolução pôde unificar os interesses mais conflitantes, o PT renuncia às suas críticas anteriores, anula as da sociedade e desprotege o Estado. Tais críticas não eram crispações xiitas, mas a luta por uma nova institucionalidade republicana no movimento incessante do poderoso capitalismo global contra a mescla das arcaicas práticas patrimonialistas e o novo capitalismo digital, a mais perigosa mistura para a República e a democracia.
O PT e o governo fizeram da esquerda a inimiga da "governabilidade", tornaram impossível o diálogo crítico, pois só admitem louvaminhas, desmobilizaram as categorias organizadas, tutelaram o movimento sindical e tratam a migalhas mesmo o MST, seu ainda aliado. Mas quem desestabiliza o governo é a direita de todas as denominações: foi a revista "Época" que revelou tudo, e sabe-se o que deve o Grupo Globo e como pressiona o BNDES para salvá-lo da bancarrota. A própria sobrevivência do governo depende agora de políticos patrimonialistas, mestres da manipulação e caciquismo de verbas públicas privatizadas. Com o desdobramento do "Waldogate", o governo Lula poderá terminar antes de completar o segundo ano, abatido por uma bala perdida de uma luta entre gangues. E teremos como futuro próximo o aprofundamento do neopopulismo lulista, com suas visões de Deus - é o segundo personagem da história a falar com Deus, depois de Moisés-, o governo manietado, ameaçado constantemente por novas chantagens, e a reedição da aliança que desgovernou o país nas duas últimas décadas.
É do interesse popular criar as novas formas institucionais de regulamentação das novas forças produtivas. O roubo do dinheiro público é antiético exatamente porque tira recursos das obras públicas, dilapida o patrimônio público, obriga a cortar despesas de educação, saúde, lazer, cultura, concentra renda e riqueza e nos mantém numa obscena desigualdade. O argumento do lacerdismo dos que denunciam as falcatruas seria apenas pobre, se não fosse anti-republicano. Conviria ao PT voltar a olhar sua antiga base e perguntar por que tantos homens e mulheres estão jogados ao desemprego, às humilhantes ocupações "informais" de catador de lixo e vendedor de bagulhos falsificados. O roubo do dinheiro público é parte da resposta.

Francisco de Oliveira, 70, professor titular aposentado do Departamento de Sociologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP, é coordenador científico do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania da faculdade.


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