São Paulo, sexta-feira, 04 de maio de 2001

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JOSÉ SARNEY

Lucro versus saúde

Com o fim da polarização ideológica, surgiu a necessidade de um novo ordenamento mundial visando à sobrevivência da humanidade. Um dos problemas identificados foi o das doenças desconhecidas, a exigir uma ação coordenada para salvaguardar a espécie humana. A Aids foi o primeiro sinal vermelho a aparecer, logo tornada pandemia, com o aspecto singular de estar ligada à reprodução, na associação trágica do amor à morte.
Mobilizaram-se no mundo inteiro a inteligência científica e os centros de pesquisa para identificar a doença, métodos de prevenção e tratamento. No Congresso de Vancouver sobre Aids, em 1996, no Canadá, foi anunciada a descoberta das drogas inibidoras da protease, que, conjugadas, diminuíam a quantidade de vírus e evitavam a eclosão da doença, embora o HIV permanecesse ativo, sem desaparecer. Os laboratórios do mundo inteiro, ávidos de resultados, viram nessa descoberta não o lado humano, a extraordinária conquista científica, mas a abertura de um campo de fantásticos ganhos econômicos.
Para o domínio do mercado global de fármacos, os americanos passaram a exigir que todos os países aderissem a leis de proteção a patentes e impuseram severa defesa da indústria química. Alguns setores no nosso país resistiram. Mas o governo brasileiro cedeu, fragilizado pela ameaça da crise econômica.
Eu era presidente do Senado quando apareceu, pelo Congresso, o ex-secretário da Defesa dos Estados Unidos Gaspar Weinberger, que conheci quando fui recebido em 1986 pelo presidente Reagan. Agora, era nada mais nada menos do que o lobista privilegiado do oligopólio da indústria química. Veio ameaçar com sanções dos EUA se não votássemos a Lei de Patentes.
O embaixador dos Estados Unidos àquela época confirmou, em carta tornada pública, a pressão sobre o assunto. A lei foi aprovada, com a ressalva de que a patente pudesse ser quebrada quando ocorresse "falta de fabricação do produto no Brasil ou emergência ocasional de saúde".
O Brasil é reconhecido, mundialmente, como detentor do melhor programa de combate à Aids. Tenho um pouco de ajuda nessa história. Ele começou com projeto de minha autoria, dando gratuidade na distribuição de remédios contra o HIV. Minha condição de presidente do Congresso fez com que o projeto fosse aprovado e sancionado em poucos dias. A área econômica do governo quis vetá-lo, alegando, como sempre, falta de recursos. Reagi e o presidente sancionou. A partir daí, o Ministério da Saúde passou a ser o maior comprador desses medicamentos. As multinacionais aproveitaram para aumentar os preços. A elas não interessavam razões humanitárias, só lucros. Agora, como o exemplo está pegando no mundo inteiro, o governo americano quer evitar que países pobres fabriquem esses medicamentos e acusa o Brasil de chefiar essa cruzada.
Temos, assim, reconhecidamente, uma grande causa. O ministro José Serra, corajoso e eficiente, está à frente dela. Total apoio a ele, que, como nós, deseja um mundo sem epidemias, o que os laboratórios consideram desgraça para os seus lucros.


José Sarney escreve às sextas-feiras nesta coluna.


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