São Paulo, terça-feira, 04 de maio de 2004

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ROBERTO MANGABEIRA UNGER

Minimalismo salarial

Nossa força de trabalho não é nem a mais equipada nem a mais barata do mundo. Não sendo uma Dinamarca, o Brasil também não pode e não quer ser uma China: economia de navio negreiro, nunca mais. Precisa elevar o salário do brasileiro ao mesmo tempo que impede os ganhos salariais de ficarem concentrados nos setores mais capitalizados da economia. Crescimento que não se baseie nessas duas diretrizes é crescimento sem aprofundamento de nosso mercado e sem valorização de nosso trabalhador. É, por isso mesmo, crescimento estreito e frágil.
Trocamos essas verdades justiceiras por dogmas pseudocientíficos. Exemplo dessas mistificações é a idéia de que aumento de salário real não pode ultrapassar melhora de produtividade: o avanço seria desfeito por inflação. Se isso fosse verdade, não haveria como explicar por que países em níveis semelhantes de desenvolvimento divergem dramaticamente na maneira de repartir a renda nacional entre o capital e o trabalho, mesmo depois de levadas em conta diferenças naturais e demográficas. A divergência vem da política e das instituições, não das estrelas. Nenhum grande país de renda média (exceto o México) dá ao trabalho parte tão pequena da renda nacional quanto o Brasil. Nenhum tolera desigualdades tão extremas dentro do assalariado. E nenhum, agora, cresce tão pouco. Não foram as leis da economia que nos condenaram a tudo isso. Fomos nós que nos condenamos.
Para dar viés altista aos ganhos do trabalho, sem desestimular o emprego, e para moderar desigualdades dentro do assalariado, precisamos de todo um conjunto de iniciativas. A partir do topo da hierarquia salarial, fazer cumprir o preceito constitucional da participação dos trabalhadores nos lucros das empresas. No meio da hierarquia salarial, evitar que sindicalismo fragmentado -como aquele que o governo propõe sob o rótulo de pluralismo sindical- facilite acertos desigualizadores entre as grandes empresas e a elite operária. Na base da hierarquia salarial, subsidiar, direta ou indiretamente, o emprego e a qualificação dos trabalhadores menos preparados. Abolir os encargos sobre a folha de salários para fomentar o emprego com carteira assinada, financiando os benefícios trabalhistas por meio dos impostos gerais. E elevar, de maneira decisiva e persistente, o salário mínimo.
A valorização do trabalho e do trabalhador é, junto com a ampliação do acesso ao crédito, à tecnologia e ao conhecimento e com a elevação da qualidade do ensino público, o eixo daquilo que o país mais quer -desenvolvimento com justiça. O salário mínimo em alta faz parte disso. Para que o salário mínimo desempenhe seu papel, não pode servir de cifra simbólica, a ser multiplicada em toda a estrutura de salários e de aposentadorias. É esse efeito multiplicador, sacramentado na Constituição de 1988, o que perverte a discussão sobre salário em debate sobre déficit e inflação. O único vínculo que se deve admitir é o do salário mínimo com a aposentadoria mínima; nada de lançar ministros da Fazenda contra trabalhadores pobres. A política do salário mínimo deve ser o ponto em que se encontram a luta para aumentar a parcela que cabe ao trabalho na renda nacional e o esforço para diminuir desigualdades entre os trabalhadores. Em vez disso, virou mais uma oportunidade para sacrificar compromissos a superstições e ornamentar injustiças com mentiras.


Roberto Mangabeira Unger escreve às terças-feiras nesta coluna.
www.law.harvard.edu/unger


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