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DEMÉTRIO MAGNOLI
Em berço esplêndido
Nacionalização é um termo
vago, que acata múltiplas interpretações. Na campanha que o conduziu à Presidência, Evo Morales dançou
em torno das labaredas da ambigüidade, sugerindo coisas diferentes para os
públicos interno e externo. No governo, seu passo inicial foi regulamentar
a lei dos hidrocarbonetos, recuperando para o Estado a propriedade do gás
e do petróleo na "boca do poço", cancelando o preço do "gás solidário"
oferecido temporariamente à Argentina e impondo negociações destinadas
a aumentar os preços de exportação
do produto.
Essa "nacionalização" não aplacou o
vulcão social que entrou em erupção
na Bolívia há três anos, devorando sucessivamente os presidentes Sánchez
de Losada e Carlos Mesa. Há semanas,
a COB, central sindical do país, ensaiou uma greve geral de advertência,
que não chegou a decolar, mas reativou os movimentos sociais de El Alto,
a imensa periferia ameríndia de La
Paz. Morales, que não quer se juntar à
galeria dos defenestrados, produziu
então uma segunda interpretação da
"nacionalização", na forma do decreto do 1º de Maio. Essa lei representa,
de fato, a estatização da produção de
gás e petróleo no país.
O decreto de Morales é fruto das circunstâncias internas, mas também de
um dado internacional: o respaldo de
Hugo Chávez. O presidente boliviano
não é um néscio, mas um líder experimentado. Ele não ousaria afrontar as
empresas internacionais se lhe faltasse
a garantia de que, na hipótese da retirada dessas empresas, a poderosa estatal venezuelana de petróleo injetaria
os capitais e a tecnologia para a continuidade da exploração dos hidrocarbonetos.
A decisão final pela estatização, ao
que tudo indica, foi adotada às pressas, em consultas bilaterais com Caracas, mas sem qualquer aviso prévio ao
Brasil. Na antevéspera do anúncio do
decreto, Chávez, Morales e Fidel Castro assinaram um tratado de comércio
que formaliza a "geopolítica do petróleo" conduzida pelo primeiro e tem
óbvio significado simbólico. Em conjunto, o decreto boliviano e o tratado
tripartite selam um alinhamento que
exclui o Brasil.
Não é um revés isolado. O tratado de
comércio firmado entre o Peru e os
EUA somou-se aos acordos bilaterais
do Chile, da Colômbia e do Equador
com os EUA, provocou a implosão da
Comunidade Andina e completou a
derrocada da Comunidade Sul-Americana de Nações, proclamada por iniciativa do Brasil na declaração solene e
vazia de dezembro de 2004. O próximo passo pode ser a retirada uruguaia
do Mercosul, já anunciada pelo presidente Tabaré Vazquez, que acalenta
seu próprio acordo comercial com os
EUA. O Brasil tem responsabilidade
direta, ainda que parcial, no desfecho:
a trilha até esses tratados foi aberta pela decisão da "Alca à la carte", articulada entre Washington e Brasília e apresentada pelo chanceler Celso Amorim
como retumbante vitória da diplomacia brasileira.
Na sua viagem inaugural ao exterior,
em Quito, em janeiro de 2003, Lula
ressuscitou o adágio anacrônico da
"liderança natural" brasileira na esfera
sul-americana. "Vamos desbravar a
América do Sul, tão próxima e tão distante", anunciou em êxtase e deslumbramento, negando-se a reconhecer a
história que o precedia. O próximo
presidente, seja ele quem for, está condenado a recolher os cacos das relações externas do Brasil.
Demétrio Magnoli escreve às quintas-feiras
nesta coluna.
@ - magnoli@ajato.com.br
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