São Paulo, domingo, 04 de junho de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

Crise de identidade

RIO DE JANEIRO - Entrei no táxi e o motorista me saudou com um entusiástico "é muita honra!". Agradeci, mesmo sem saber por que eu era uma honra para ele. Ao virar na primeira curva, explicou: "Estou lendo "O beijo no asfalto", é maravilhoso, estou adorando".
Encalistrado, não o corrigi, já me confundiram anteriormente com Fernando Sabino e com o próprio Nelson Rodrigues. Estou habituado. Ele continuou elogiando a peça que não escrevi, volta e meia dizia que eu era o maior. Modestamente fiquei encolhido no meu canto, sem nada a fazer para desmanchar a honra que involuntariamente lhe causara.
Depois de muito me elogiar, chamou-me de Cony e aí quem ficou pasmado fui eu. Ele acertara o nome, mas errara a obra. Atribuí o equivoco ao fato de ter publicado, há pouco, um livro intitulado "O beijo da morte", em co-autoria com Anna Lee. Atribuí o erro dele à troca do nome do título, embora estivesse correto na autoria.
Durou pouco a explicação que dei para mim mesmo. Quando saltei na cidade e quis pagar a corrida, não aceitou o meu dinheiro, era uma homenagem que me fazia. Comunicou-me que após "O beijo no asfalto", queria ler minha obra toda, ia comprar "O vestido de noiva". Quis saber se era bom, ouvira dizer que era a minha melhor obra.
Mais uma vez modestamente, disse que não era das minhas melhores coisas. Ele ficou decepcionado. Além do mais, um outro táxi buzinava atrás dele, pedindo que se mancasse, estava atravancando o tráfego. Quis saber então que obra eu lhe recomendaria para a sua próxima leitura. Sugeri "O auto da compadecida".
Ficou satisfeito, disse que já tinha ouvido falar muito bem dessa obra. Saltei do táxi e, antes que arrancasse, ele disse para si mesmo: "Ganhei o meu dia!"


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